Experiências #14
O trânsito lisboeta estava caótico naquele final de tarde. Nada de novo na cidade, mas para Carolina era o inferno. Estava retida há quase duas horas e odiava não conseguir desvencilhar- se dali. Não era o trânsito em si, mas o momento, o silêncio, a incapacidade de calar os pensamentos que sem ordem prévia lhe assombravam o espírito. Piorava o facto de não ter onde se concentrar: já tinha tentado a música, mas não surtiu o efeito desejado, o trabalho tinha terminado, não tinha deixado pendentes, Maria estaria com os pais e não tinha planos para aquela noite. Como em todas as outras, de resto. Há já muito tempo que não saía com ninguém. Namoriscou com o estagiário, todavia não havia nada nele que a preenchesse. Fora um divertimento, uma fuga a um divórcio atribulado e uma consequente quebra radical com o ex marido. Divertiu-se, teve uma ligeira pena do miúdo que usara a seu favor, contudo não lamentava profundamente. No meio do caos que era a sua vida naquele momento, ter alguém quem a desejasse eleva-lhe o ego dando-lhe a sensação de que ainda dominava alguma coisa na situação.
Não dominava, claro, de contrário não precisaria de distrações e ilusões de poder. Sorriu perante a constatação. Era fácil raciocinar quando a distância temporal se interpunha entre situações. Foi vagueando por entre memórias e o seu pensamento terminou, invariavelmente, em Tomás.
Tinha saudades do marido. Não do fantasmas do último ano, mas do marido que levara a apaixonar-se todos os dias mais um bocadinho. Que a fazia sentir-se especial, mesmo quando acordava de uma noitada e ainda com hálito a gin tónico. Recordava a forma metódica como organizava as tarefas, inclusive os seus pensamentos e ideias. Era simples conversar com Tomás e não raras vezes a lógica irrefutável e o seu pragamatismo levavam-na à loucura. Tinha agora consciência que muitas vezes se insuflara por nada, mesquinhices que não tinham o mínimo interesse.
Instintivamente, como um hábito enraizado há muito tempo, brincou com a aliança que ainda mantinha no anelar fio. Sorriu ao recordar a viagem a Paris, apenas dois anos antes, e fez um esforço extra por manter a compostura. Poderia a vida sofrer semelhante volta? Como aconteceu? O que fez de errado? Porquê a ela? Porquê Tomás? Não sabia o quê, quando ou como, nunca se apercebera até ser alertada pelo seu espião de recurso. É sempre assim, nunca vemos o que está mesmo à nossa frente. Estamos permanentemente cegos pela azáfama do dia-a-dia e os detalhes são arrumados a um canto para pensar depois. E depois... Bem, o depois às vezes é tarde demais, dando lugar aos "ses" da vida. Rodou novamente a aliança no dedo enquanto balançava a sua quota parte de culpa na equação tentando,em vão, responder aos seus "ses".
Suspirou resignada à frustação dos eternos enigmas ao mesmo tempo que o trânsito recomeçava, lentamente, a fluir. A vista da ponte do Tejo era soberba e o pôr do sol conferia uma tonalidade rosada às nuvens, lembrando o algodão doce dos arraiais de verão.
Talvez por ir tão absorta nos enigmas que nunca teriam conclusão, Carolina não se apercebeu do som, nem do cheiro a borracha queimada. Não viu a guinada do carro da frente, esquisita e sem sentido dado que seguiam numa auto-estrada. Não reparou no ângulo esquisito dos faróis da viatura que seguia em sentido oposto, nem de como rapidamente perdia o controlo da direção. Quando o seu cérebro assimilou o que estava a acontecer já não havia tempo para reagir ou sequer tentar um milésimo de desvio. Pensou em tudo e em nada naquela fração de segundo. A seguir, tudo ficou escuro.