- Não sejas parva, Carolina. Ainda me lembro quando há me disseste que ias fisgar o advogado bonitão do Presidente do… Qual era o clube mesmo?
- Não me lembro, não é importante. Onde é que queres chegar?
- Onde eu quero chegar? Tu é que decidiste que o ias conquistar, tu é que lhe deste a nega durante meses, enquanto ele praticamente beijava o chão que pisavas, tu é que decidiste como, quando e onde se iam encontrar, tu é que decidiste se iam chegar a vias de facto na primeira noite ou não… Tu é que decidiste tudo na vossa relação. Tu é que és o motor lá de casa. Sem ti a miúda andava vestida com roupa da Primark e ele andava de Citröen Saxo azul cueca, fatos da Giovanni Galli e gravatas da Feira de Carcavelos. Se tu saíres da equação, ele pura e simplesmente torna-se incapaz de fazer algo que não seja relacionado com o Direito. E mesmo isso duvido. Ele venera-te, amiga. E aposto que se lhe pedires o divórcio, ele fica tão de rastos que nem discute e te dá tudo o que quiseres. Só tens que andar para a frente com o pedido…
- Olha querida, tenho que ir, isto de ser a primeira pessoa a quem o Director de Comunicação quer dar trabalho é muito bom, mas tem esta desvantagens. Falamos depois tá? Beijinho e obrigado.
- Beijinho, leoa. Gosto muito de ti, sabias?
- Sei. E eu de ti.
Carolina desliga o telefone, compõe o sofisticado tailleur, confirma que o decote está decente e levanta-se em direcção ao gabinete de Luís. Durante o percurso, pensa na conversa que acabara de ter com Sofia. Já há algum tempo que se questionava sobre o seu casamento. Por um lado, agradava-lhe a segurança de ter alguém quando chegava a casa, cansada de um dia de trabalho. Por outro, agradava-lhe a ideia de recomeçar de novo, escolher novamente um homem, transformá-lo num animal na área em que ele estivesse e claro, pelo caminho divertir-se um pouco com ele. Entra no gabinete de Luís e sorri profissionalmente. Luís levanta o olhar do ecrã do portátil e mira-a de cima abaixo, parando mais tempo do que o que devia no seu peito. Luís era um bom homem, felizmente casado e sem escândalos que se lhe conhecessem, mas tinha uma mente demasiado aberta no que à sexualidade dizia respeito. Não tinha qualquer pejo em mirá-la com ar guloso, de comentar quando ela trazia um conjunto mais arrojado ou de fazer um piropo ao seu rabo ou ao seu peito nas alturas mais desproporcionadas. Inclusivamente, tinha na sua posse registos de conversas privadas no chat da estação em que a linguagem dele resvalou, sem qualquer pejo, para conversas sexuais explícitas. Numa delas, perguntava abertamente quantas vezes por semana mantinha relações com Tomás e quantos orgasmos costumava ter em média. Perguntas às quais Carolina não respondeu directamente mas que a fizeram sorrir, na altura. Sabia que Luís era o seu chefe, mas acima de tudo era um amigo de longa data desde os tempos da faculdade, colega de carteira do irmão mais velho no mesmo colégio em que também ela estudou, o seu padrinho de casamento. Além disso, também foi o homem com quem manteve relações sexuais ocasionais em noites de maior solidão e menor predisposição para a utilização do vibrador. Era a ele a quem telefonava a pedir companhia antes de conhecer Tomás. A relação que mantinha com ele era extremamente profissional dentro do escritório perante os colegas mas, a dois dentro do gabinete ou na rua, era o outro homem perto de quem se sentia completamente à vontade. Era aquele a quem era capaz de dizer as maiores barbaridades e manter as conversas que não tinha em casa.
- Bom dia. Desculpa se demorei Luís, estava a conversar com a Sofia e já sabes como ela é, primeiro que se cale é um sarilho.
- Não tem mal, Carolina. Não tem mal. Bom dia. A Sofia, continua junta com aquele cromo do Manel?
- Sim, estão a pensar em ter filhos em breve.
- Que pena, um corpo daqueles não merece uma gravidez. Vai estragar aquelas mamas todas.
- Desculpa Luís, hoje estou com imenso trabalho por causa da reportagem da empresa da TV Cabo. Chamaste-me para me dizer algo importante?
- Claro claro, desculpa. Temos que marcar uma reunião com a chefia do Canal. Vai haver uma reestruturação e estou a apostar em ti para seres a nova face do telejornal do almoço. Mas para isso, tens de ser devidamente apresentada e vais ter que mostrar todos os teus dotes, que eles olham para ti de lado por eu ser amigo do teu irmão e teu padrinho de casamento. Quando é que te dá jeito para a semana?
- A sério? Eu? Obrigado Luís. Muito obrigado pela confiança. Escolhe tu o dia e a hora, desde que seja antes das onze ou depois da uma da tarde, porque esse é o intervalo em que tou a coordenar o programa da Judite, como sabes.
- De nada. Sabes que gosto muito da tua maneira de trabalhar e acho que tens futuro no canal. E sei que há outros canais de olho em ti para o mesmo espaço. Assim adianto-me a eles. E tu ficas aqui ao pé de mim, que comigo é que tu tás bem. Vou então tratar de tudo e depois digo-te OK?
- OK. Até logo.
Carolina vira costas, sai do gabinete de Luís e entra na casa de banho. Por um lado, apetece-lhe dar pulos de alegria pela promoção iminente. Por outro, apetece-lhe chorar porque vai ter menos tempo para lidar com os seus problemas familiares. Entra num cubículo e senta-se a pensar… “E agora, que raio vou fazer à minha vida?”
Quando é que a sua vida tinha ficado assim? Quando é que perdera o controlo da situação? Como é que se deixara afundar tanto? Questões que assomavam uma e outra vez à cabeça de Tomás, naquela manhã de segunda feira. Limitava-se a observar as pás da ventoinha que pairava no tecto, fazendo um esforço por não contar número de elos da corrente que o sustinha.
Não sabia quando começara. Talvez quando se empenhava demasiado no trabalho, verificando uma e outra vez todo o seu trabalho argumentativo, para que não existissem brechas que pusessem em causa o seu sucesso na sala de audiências. Ou quando saía em família e dava consigo a tentar descortinar o que pairava nas mentes dos que consigo se cruzavam, buscando olhares de interesse, fazendo leituras corporais que não existiam e divagando no obscuro da mente humana. Talvez quando se entretinha a arrumar a secretária numa tentativa de manter a ordem visível, por oposição ao caos que ia na sua cabeça, colocando as esferográficas todas no mesmo sentido e aparando o bico já afiado dos lápis. Talvez… Não valia a pena, fosse o que fosse que despoletara a situação, Tomás era única e exclusivamente o único culpado por deixar que o dominasse. Sabia que eram coisas da sua cabeça, sem sentido, sem fundamento, mas mesmo assim não se esforçara o suficiente por as inibir.
Quando o psicólogo clinico a que recorrera quase arrastado por Carolina depois de um ultimato amargo o viu, estranhou a sugestão para ser avaliado por um psiquiatra da sua confiança. Ainda ponderou não comparecer na consulta, não estava louco, estava apenas assoberbado em trabalho, stressado do corre-corre diário, enfim, era apenas mais uma entre tantas mentes cansadas e a precisar de férias. Não precisava do psiquiatra para nada, precisava de se meter num avião com destino a uma ilha paradísica e não fazer nenhum durante um mês. Era exactamente isso que o Dr. Henrique lhe diria e era exactamente isso que ia fazer, mal saísse do seu gabinete. Conversaria com a mulher, para que pudesse agilizar o trabalho na estação, trataria de passar todo o seu trabalho ao seu chefe, a miúda entraria entretanto em férias lectivas e teriam um mês sabático. Iria fazer-lhes bem e voltariam desta viagem ainda mais unidos e rejuvenescidos.
- Tomás Carvalho. – a voz rouca trouxe Tomás de volta à sala de espera e, entusiasmado com a perspectiva de umas férias a curto prazo, dirigiu-se para o gabinete luminoso onde um médico com ar experiente e algo austero aguardava a sua chegada.
Apenas três anos antes, tudo corria sobre rodas. Tomás tornava-se cada vez mais importante na sociedade de advogados onde trabalhava, Carolina subia a pulso a escada do jornalismo, Maria crescia feliz e sadia, sem grandes sobressaltos que não a ocasional otite ou diarreia.A vida de casal ficava-lhes bem. Longos passeios ao fim de semana por Belém, Cascais ou Sintra, uma vida social recatada com poucos mas fiéis amigos, tanto do tempo da escola como provenientes dos diferentes ramos profissionais que ocupavam, jantares a dois em restaurantes intimistas, férias a três nas luxuosas propriedades construídas pelo avô, tudo lhes corria bem. A conta bancária engrossava na mesma medida do sucesso pelo que optaram por colocar Maria num dos melhores colégios privados de Lisboa, no Lumiar, a cinco minutos a pé de casa, um duplex de último andar num dos melhores condomínios da zona. O gabinete de Tomás e o escritório de Carolina situavam-se a dez minutos de carro e os seus horários permitiam fugir ao trânsito, uma vez que Carolina saía de casa bem cedo e Tomás apenas depois de levar Maria a pé ao colégio e tomar o pequeno almoço numa das muitas Padarias Portuguesas que pululavam pela capital. No entanto, uma sombra pairava naquele quadro pintado a cores tão alegres. Havia dias em que Tomás se alheava, fechava no escritório de casa e estudava até à exaustão os adversários que se lhe atravessavam na barra do tribunal. Sempre que se aproximava uma sessão importante, Tomás não raras vezes estava ainda ao computador quando Carolina estava a sair para o seu trabalho. Uma vez e outra, Carolina não questionava os métodos do seu amado esposo, no entanto essas noites em claro começaram a pesar no casamento. A falta de afecto do seu marido fez com que Carolina ficasse receosa de que algo não estava bem e a paranóia instalou-se. Não raras vezes ela perscrutava o telefone dele por sms ou chamadas de outras mulheres. A conta do Facebook estava constantemente aberta no iPad última geração, pelo que também lhe era fácil aceder-lhe. Começou a criar contas em sites de convívio, não com a intenção de trair o seu marido, mas apenas à procura dele. Não era possível que ele passasse doze horas a estudar o adversário pois não? Tinha que haver outra fêmea a querer apoderar-se do seu macho amado, aquele que tantas vezes não se parecia cansar do seu corpo mas que nos últimos tempos mal olhava para ela quando se despiam juntos antes de irem para a cama, nas raras noites em que iam juntos. E sexo... Tinha-o mais com o pequeno vibrador cor de rosa escondido na gaveta da lingerie "especial" que raramente usava do que com o marido e, mesmo quando o tinha, era ela quem quase tinha que o violar, pois ele andava distante e concentrado apenas no seu papel de rockstar dos tribunais.
Certa sexta-feira, Carolina pede à mãe para ficar com a pequena Maria durante o fim de semana e telefona ao dono da exclusiva propriedade na Comporta construída pelo avô, a reservar um bungalow para o fim de semana. Recebe as instruções de pagamento e telefona ao marido a confirmar a disponibilidade. A Chamada durou pouco mais que o tempo necessário para ele dizer um sim meio distante e nada animador. Ainda assim, Carolina enche-se de coragem, efectua o avultado pagamento, corre para casa, veste uma das suas ingerias especiais e um catsuit preto tão do agrado de Tomás e após preparar uma pequena mala com os elementos essenciais para dois dias românticos no Alentejo, abre uma garrafa de vinho e despeja um copo para acompanhar um livro enquanto aguarda a chegada do seu amado. Acorda às duas da manhã de sábado toda torcida no sofá e procura o marido pela casa, julgando que ele não a tinha acordado para não incomodar. Ao não encontrá-lo, procura no seu telemóvel uma explicação para o sucedido, mas nem uma sms nem uma chamada. Antes de lhe ligar, liga a pesquisa do telemóvel e procura o telemóvel do seu marido, verificando que se encontra na zona do Chiado e Cais do Sodré em vez de nas Avenidas Novas no seu escritório. Furiosa, telefona-lhe para apenas receber como resposta música de fundo ensurdecedora e grunhidos alcoolizados. Desce até ao carro e dirige-se para a zona o mais rápido que pode, descobrindo-o num dos bares mais reles da zona, com duas jovens seminuas a dançarem com ele, gravata enrolada na cabeça e os colegas de escritório a rirem às gargalhadas num privado próximo. Quase que o arrasta dali para fora e conduz furiosamente até à Comporta, numa vã tentativa de salvar o fim de semana. Efectua rapidamente o check-in enquanto ele ressona no banco do pendura e transporta-o grosseiramente para a cama, nem se preocupando em despi-lo. No dia seguinte ao pequeno almoço, estala a pior discussão de sempre. Ele nem se recordava da chamada dela a confirmar o fim de semana e apenas saiu para se divertir com os colegas. Não lhe tinha ligado porque eram quase dez da noite quando saiu da reunião e calculou que ela tivesse saído com as amigas, como fazia quase todas as sextas-feiras. Pediu desculpa e prometeu não repetir a asneira. As palavras dele caíram que nem uma bomba e Carolina apercebeu-se que aquele homem que aprendera a amar intensa e incondicionalmente já nem sequer se preocupava em dar-lhe uma satisfação quando saía com os amigos. Quando é que ela, sempre tão independente e no controlo das coisas, deixara que o seu casamento, de que tanto se orgulhava, caísse neste ninho de ratos? Não tinha sido isso que o seu pai lhe tinha ensinado, pois não? Recordou as sábias palavras. Primeiro os filhos, depois ela própria, depois sim os homens. Estava na hora de transformar radicalmente a sua vida. Ameaçou Tomás de que, à próxima, desaparecia da vida dele e nem sequer o deixava ver a filha e foi sozinha para a praia. Meia hora depois, Tomás chega com ar desconsolado à praia. Carolina deitada numa espreguiçadeira com um livro como companhia nem olha para ele enquanto se instala ao seu lado. Resolve naquele momento que está na hora de se sentir melhor, mais mulher. Como tal, retira a parte de cima do seu já reduzido bikini e caminha resoluta e bamboleante para o mar, sob o olhar guloso dos homens que estão por perto e o cenho recriminador das mulheres que os acompanham. Nem dez minutos depois Tomás está a seu lado, arrependido e manso como um cãozinho de colo. Ignora-o propositadamente e vai meter conversa com o nadador-salvador, um jovem de vinte anos no máximo com físico de porteiro de discoteca e olhar de ave de rapina para os seus seios cheios e redondos. Duas gargalhadas depois lá está novamente Tomás por perto, a tentar intrometer-se na conversa e a querer recolher o que é seu. É nessa altura que passa o jovem que vende Bolas de Berlim, pelo que com um sorriso sedutor para o nadador salvador afasta-se e caminha como se numa passerelle até ao jovem e pede uma bola de berlim com creme, estende uma nota de dez euros e trinca o doce com um gemido de prazer tão sedutor que faz com que o moço se atrapalhe e se perca no troco que está a fazer, espalhando moedas pela areia.
Tomás, fulo, recolhe ao bungalow, chama um táxi e vai para casa.
Texto da autoria de Mário Pereira, como seguimento da história que temos vindo a construir.
- Tu estás parvo, Tomás?! Onde raio foste tu buscar essa ideia estapafúrdia? - não era a primeira vez que isto acontecia, Carolina sentia-se num déja vu, era discussão recorrente e ultimamente, bastante frequente. Mas desta vez, Tomás fora longe demais.
É claro que ela o tinha visto. Era impossível não reparar no homem soturno que seguia atrás deles, em plena baixa lisboeta. Como um cão que segue uma pista, mas não tem ordem de ataque, Tomás foi no encalço deles, até à porta do hotel, subindo calmamente pelas escadas até ao 13º piso, onde teria lugar a reunião que apresentaria Carolina como diretora de conteúdos do canal em que trabalhava.
Apostava em como Tomás contara os degraus, enquanto os subia de par em par. Sentiu o olhar dele fixo, penetrante e a sua postura rígida quando se sentou num dos sofás do átrio.
Mesmo na sala, com a porta fechada e com felicitações contanstes por parte dos colegas, Carolina sentia-lhe a tensão, o nervosismo. Queria muito ir lá fora falar com ele, com calma, mas sabia que não seria escutada e tampouco conseguiria manter os ânimos leves.
A discussão começou no carro, ainda ela não tinha se tinha sentado e metade da direção da estação tinha os olhos cravados na sua figura trémula e ligeiramente envorgonhada. Não era todos os dias que uma mulher daquele calibre tinha um marido raivoso à espera.
- Eu vi Carolina! Não tentes ludribiar-me! Ninguém me contou, eu vi! - apontou-lhe o indicador acusador, como se ela tivesse acabado de cometer um crime.
- Viste o quê, Tomás?! Eu a almoçar com o meu chefe, amigo de longa data e que só por acaso é nosso padrinho de casamento, a subir com ele para o hotel com decorreu a minha reunião de apresentação como diretora de conteúdos?! - gritou, enquanto sentia a fúria crescer, dominando-a. Estava farta daquilo.
- Eu vi como tu olhavas para ele! Como lhe sorrias! Como abanavas a anca enquanto caminhavas à frente dele. Tu estavas a provoca-lo deliberadamente! Tal como provocas qualquer homem que por ti passe. Ou pensas que não sei? Que não vejo as trocas de olhares lascivos, hã? Pensas que sou parvo? Ou queres fazer de mim parvo? - Berrou ensurdecedoramente, enquanto pisava um bocadinho mais o acelador. Estavam quase em casa.
Num gesto automático, Carolina fechou os olhos e esfregou as têmporas. Procurou dentro de si a pouca calma que lhe restava e, quando a encontrou, falou o mais suavemente possível:
- Tomás, o que tu viste foi um almoço entre amigos. Tu sabes que o Luís é um dos melhores amigos do meu avô, viu-me crescer... Que sentido faria andar metida com ele? Pela enésima vez Tomás: não houve, nem nunca vai haver, nada entre nós.
Tomás assentiu, num gesto mecânico e muito pouco convincente. A raiva mal contida era facilmente percebida pela força com que segurava a manete de mudanças.
- Tens que parar Tomás. Não podes continuar com essa ansiedade, com esse nervoso miudinho que dá cabo de ti e te faz ver coisas onde elas não existem. Tem sido recorrente Tomás, acusas-me à frente de estranhos, à frente da miúda e agora à frente dos meus chefes? Qual vai ser a próxima? Vais insultar-me no meio da rua? Apontar-me o dedo e chamar-me de puta no meio de um restaurante só porque cumprimentei o gerente? - deixou que as perguntas pairassem no ar, enquanto ele estacionava o carro à porta de casa, preparando-se para a pergunta fulcral:
- Tomás, diz-me a verdade: tu começaste a medicação, pois não? Tu foste à consulta, ouviste tudo o que o dr. Henrique te disse, aviaste a receita na farmácia, mas nunca chegaste a abrir a embalagem, pois não?
Não se ouviu resposta. Apenas o bater da porta do carro, com uma força que não lhe era habitual. Viu-o subir as escadas de acesso ao apartamento, mas deixou-se ficar sentada, no carro, tentando descortinar o que o silêncio que sussurava. Não, era óbvio que não Tomás não tinha começado o tratamento. Era óbvio que estava pior, que já pouco empenho dedicava ao trabalho, perdendo um caso importante recentemente e não se preocupando em se redimir por isso. As perseguições eram cada vez comuns e embora não fosse agressivo com gestos, era-o em palavras e na postura. O ambiente familiar era praticamente inexistente, havendo apenas um esforço por manter as aparências quando Maria estava presente e mesmo assim, já tinha presenciado duas ou três discussões mais amargas.
Daqui para a frente, caso Tomás continuasse a rejeitar ajuda médica, a situação iria piorar drasticamente. Pensou em Maria e na memória que não queria que a menina guardasse do pai. Pretendia que o visse sempre como o homem que em tempo fora: seguro de si, assertivo, confiante, não este poço de ansiedade e ciúme em que se tinha tornado. Respirou fundo, saiu do carro e seguiu para casa. Ignorou o barulho de loiça a partir que vinha da cozinha, bem como o caos que estava instalado na sala e dirigiu-se ao seu quarto, fazendo uma mala pequena para si e preparando de seguida outra para Maria.
Deixou uma nota em cima da mesa de cabeceira, acariciando ao de leve o rosto da fotografia de Tomás que lá estava.
Decidida, com o coração apertado e esforçando-se por segurar as lágrimas que teimavam em rolar cara abaixo, Carolina saiu de casa. Lá dentro, os gritos continuavam, a loiça estalava e um casamento terminava.
O texto que segue é a continuação desta história e da autoria do Mário, que tem imenso jeito para a coisa, como poderão comprovar de seguida.
Tomás era agora uma sombra do homem alto e bem parecido que fora nos seus trinta anos, quando conhecera Carolina. Engordara imenso e deixara crescer uma barba que se cuidada lhe daria o charme trendy da sociedade, mas a vontade de cuidar das suas pilosidades corporais desvanecera-se desde aquele fatídico dia.
Fora, em tempos, um advogado em rápida ascensão numa das maiores sociedades de advogados de Lisboa. Entrara ainda estagiário, acabado de sair da Universidade de Lisboa onde se licenciara com moderado brilhantismo, mas com uma mente sagaz e de raciocínio lógico tão rápido que um dos seus professores o referenciara a Paiva do Amaral, um dos mais brilhantes advogados de defesa do País. Paiva do Amaral esperara-o um dia à saída das aulas, fumando descontraídamente um cigarro e, a um sinal do professor, interpelara-o calmamente, convidando-o para um almoço informal. Fez-lhe algumas perguntas sobre situações de tribunal e sobre como resolveria determinados problemas que fossem colocados pela Acusação. Apanhado desprevenido, Tomás não dera parte fraca e demonstrara que as referências dadas pelo professor não eram desprovidas de conteúdo.
Uma vez na empresa, Tomás começara por, debaixo da asa do seu tutor, proceder ao estudo dos advogados de Acusação, observando-lhes os trejeitos, as hesitações, os bluffs quando os havia e, especialmente, aquele momento em que avançavam confiantes para a estocada final, quando provavam que o crime tinha realmente acontecido numa série de perguntas bem colocadas. Tornara-se, assim, uma espécie de profiler da sua sociedade de advogados, tornando mais fácil a Paiva do Amaral e restantes sócios aceitar novos processos com maior confiança, aumentando a percentagem de vitórias e, por consequência, melhorando o nome da sociedade junto do público em geral. Usara em seguida esse conhecimento adquirido para se tornar, também ele, um fantástico advogado de defesa, desmontando teorias de assassínio e esquemas de lavagem de dinheiro, reduzindo acusações de chantagem e coacção a escombros e tornando-se o advogado preferido de políticos alegadamente corruptos e presidentes de clubes de Futebol.
Conhecera Carolina precisamente na sequência de uma improvável vitória, ao dar uma entrevista a um canal privado. Chamaram-lhe a atenção os olhos verdes penetrantes e os cabelos cor de fogo provenientes do sangue Escocês do avô radicado no sul do país desde a década de 60 como construtor de paraísos para turistas. Terminada a entrevista, abordara-a com a confiança da vitória e convidara-a para jantar, apenas para ver a sua investida rejeitada por aquela jornalista imberbe com a mesma facilidade com que ele, advogado experiente, destruía os oponentes nas salas de tribunal. Continuou a tentar durante meses sair com ela por todos os meios até que um dia o seu telemóvel pessoal tocou e era ela, senhora jornalista Carolina Holster, a convidá-lo para um café depois do jantar, no bar que ela escolhera e à hora por ela pretendida. Nessa noite ele compareceu nervosamente antes da hora e quando ela chegou, sentiu-se como se ele estivesse a ser caçado e não o contrário.
A um namoro conturbado, seguiu-se um casamento numa das propriedades construídas pelo avô no meio do Alentejo, uma lua de mel num dos melhores resorts da Polinésia e Maria, não planeada mas muito desejada, menos de um ano depois. A vida sorria-lhes. Carolina singrava no canal privado e era já a pivô das notícias da hora do almoço, saindo a horas de estar com Maria depois do trabalho, levando-a a passeios e praias, museus e teatros. Tomás era já apontado como sócio para breve, faltando apenas que Paiva do Amaral convocasse reunião geral, coisa que normalmente acontecia uma vez por ano, antes do Natal.
O fatídico dia situa-se no início da Priomavera, quando Tomás sai cedo de uma sessão de tribunal, consulta a agenda familiar e verifica que Carolina assinalara uma ida ao Museu dos Coches com Maria até às dezoito horas. Sendo ainda três da tarde, dirigiu-se a Belém, entrou na fábrica dos Pastéis e, enquanto aguardava pacientemente a sua vez para comprar um pacote da deliciosa pastelaria, vislumbrou uma mecha de cabelos ruivos acompanhados por um homem vagamente familiar. Olhou melhor e reconheceu ambos. Carolina sorria sedutoramente para o vice-director de comunicação da estação onde trabalhava. O mesmo sorriso que lhe fizera na primeira noite, que terminou na casa dele, com ela por cima, delírio de posse e respiração funda, palavras doces sussurradas e algumas obscenidades.
Aguardou numa mesa que eles saíssem e seguiu-os a distância segura até os ver entrar no Altis e, já a caminho do elevador, ele colocar uma mão de posse a sul da cintura dela, num gesto rápido que lhe provocou uma gargalhada que ele, fora do hotel, não ouviu mas que reconheceu pelo volteio no cabelo que fez a seguir. Ela estava a traí-lo.