Desafio dos Pássaros #14
Não nasci para isto
É a 265ª vez que lhes repito o mesmo: não nasci para isto.
Os sacanas insistem: ninguém nasceu, trabalha-se e consegue-se. Depois, mandam-me para mais uma ronda.
Não aguento mais. Já não sinto as pernas, falta-me o ar, sinto-me a colapsar de dentro para fora. Como é que eles não vêem? Como é que eles não percebem que, se continuar assim, vão acabar por me mandar para a morgue, ou pior para o hospital? Como é possível ignorar as dores de uma pessoa assim desta maneira tão vil?
Como numa espiral de euforia que nos leva a loucura, a música continua. Grita aos nossos ouvidos, impelindo-nos mais um pouco para diante. Há sempre um olhar de compreensão que se troca com um colega, na impossibilidade de articular qualquer palavra. Estamos todos no barco, custa o mesmo a todos. Saber disso, mesmo não atenuando a nossa agonia, ajuda a suportar o peso com que nos carregam as costas.
Olhamos em frente, em busca de novas ordens, exaustos, derreados e já a ver a luz ao fundo do túnel - não a da esperança, a outra que os moribundos alegam existir.
- Não nasci para isto - repito novamente para mim.
- Não desisssstteeeeeeeee! - é o grito que se ecoa pela sala, com um olhar reprovador sobre quem tem a audácia de respirar um bocado.
- Mais oitoooooo!
- Não nasci para isto - penso, enquanto conto o número de cobras, sem sentir os braços.
Finalmente, termina.
Como se sofrêssemos de amnésia, agradecemos ao nosso carrasco, elogiando o seu trabalho e prometendo voltar. É sempre assim: quanto maior o desafio, maior o vício. A mente sai leve, não sentimos nada e nem sequer sabemos como vamos descer escadas no dia seguinte. Nesse momento, temos a certeza: mesmo não nascendo para aquilo, é exactamente daquilo que precisamos.
(texto inspirado numa qualquer aula de crosstraining. Ou Power. Ou Jump. Ou Fitness, no geral.)