Desafio dos Pássaros 3.0 - Tema 2
Ninguém sabe quando chega o fim. Quando o apito do monitor se torna num zumbido constante, numa linha infinita acusando o eco vazio de um coração parado.
Amadeu tinha a certeza que o seu fim estava próximo, quando a inconsciência lhe foi imposta.
Preso a uma máquina que lhe ditava o ritmo e intensidade da respiração, inconsciente da sua fragilidade e de como o corpo se agarrava a cada fio de vida, Amadeu sonhava.
Na verdade, não sabia se sonhava ou se apenas divagava, entre memórias perdidas do acervo de alguém que já viveu mais do que a estatística diz ser a média comum.
- Não precisamos de outro fogão, Irene!
- Amadeu, este fogão nem sequer é um fogão! É um bico de gáz, homem! É claro que precisamos de um fogão. É preciso fazer a sopa para o menino, coitadinho... só com um bico não consigo dar vazão a tudo, 'Madeu!
Suspirou, como quem assume a derrota. Estavam ambos a fazer um esforço árduo para construir a casa. Não era um palácio, nem sequer uma mansão, só pretendiam um abrigo modesto a que pudessem chamar lar durante o resto da vida. Havia já paredes ao alto e placas de chão assentes, mas faltava ainda um bom tecto e um telhado eficiente. Para o fogão, ou para o outro fogão, seriam precisos três contos e quinhentos. Dois meses do seu salário, um mês a jantar água de arroz e mais meio ano a adiar um telhado eficiente. Para já, o tecto de cimento ia aguentando a chuva e entretanto chegaria a primavera com o tempo mais ameno e seco. Sim, podia adiar o telhado mais um pouco. Não mais que as duas estações que faltavam, mas o patrão também lhe prometera um aumento da jorna, talvez até conseguisse o telhado antes, se o aumento se verificasse. Olhou para a mulher embalando o pequeno António, cantarolando-lhe baixinho e percebeu que mais um mês a água de arroz pouca diferença lhe faria. O fogão iria facilitar a vida da mulher e talvez até Irene conseguisse mais alguns arranjos de costura para ajudar à despesa.
- Amanhã vamos à loja do s'Alfredo e lá vemos se se arranja outro fogão.
O corpo adormecido manteve-se imóvel ao rever aquele dia, mas dentro dele, um Amadeu soluçava silenciosa e copiosamente, questionando se algum dia voltaria a ver Irene e o fogão, já velho e ferrugento nas bordas, mas onde ainda fervia o leite, todas as manhãs.