Desafio dos Pássaros 3.0 - Tema 3
Os dias sucediam-se iguais, sem que Amadeu desse pela sua passagem. Para ele, que naquelas horas transformadas em dias e dias transformados em semanas, era sempre o mesmo dia: nenhum. Não sentia, não chorava, não ria, não angustiava, apenas existia num invólucro de pele e carne, mais pele do que carne, no mesmo leito onde escorregou para a inconsciência de um sono medicamentoso.
Sentado na velha cadeira de baloiço, que pertencera ao seu pai, Amadeu ia folheando um livro antigo, tão pesado quanto as memórias que nele estavam guardadas.
Inspirou profundamente, cheirando-lhe as origens, não sabendo que ainda era fisicamente incapaz deste tão corriqueiramente banal.
- Tivestes noticias d'Irene?
- Ainda não... E tu? A tua Josefina?
- Nada. Também lá na terra não tem muita gente que saiba 'screver. Talvez quando lá for o filho do Dr Amílcar, ela lhe peça o favor de rabiscar meia dúzia de palavras.
Não sabiam bem há quanto ali estavam, debaixo daquele calor tórrido, camuflados entre a vegetação rasteira de uma Guiné a lutar pela liberdade. Só sabiam que tinham de ali ficar, controlando quem por eles passava sem os ver, contando, recontado e passando informação ao furriel.
Iam conversando em voz baixa e sempre que havia algum ruído que lhes servisse de camuflagem acústica, naquele caso, um camião carregado de mantimentos para as tropas inimigas.
Entre um e outro lugar comum e mais uma ou outra piada, não deram conta de que o som do machimbombo pesado parara. Nem tampouco escutaram o assobio fino que rasgou o ar, num eco agoirento, seguido do som seco do corpo de Hermano embatendo pesadamente na terra.
Num ato de desespero e no meio de uma rajada de tiros que Amadeu não conseguiu perceber de onde caía, colocou o compincha aos ombros e largou a correr, tão baixo quando os arbustos lhe permitiam, mas as balas continuavam a chover, implacáveis e irredutíveis no seu percurso. Uma delas alcançou o alvo e Amadeu gritou, agarrado à coxa direita, caindo de joelhos na terra árida.
Não conseguiria salvar os dois. Não com um balázio enfiado na perna. Chorou e rezou a Nossa Senhora, para que lhe desse a força que ela não tinha.
- Não posso mais contigo! - afirmou, enquanto o atirava para longe.
De seguida, rastejou tão rápido quando pôde, enquanto chorava e rezava, num misto de desespero pela vida e de culpa pelo abandono.