Experiências #16
Vazio, escuro e sem fim à vista. Mais uma mentira da humanidade: prometem-nos que a morte é branca, serena e luminosa, como uma sala que recebe o amanhecer todos os dias, a todas as horas. Ninguém fala do negro, da tormenta e da culpa. Talvez por ser mais fácil assumir que vamos para o nosso melhor local e não para o nosso pior buraco. Não é assim em vida? Porque haveria a morte de ser diferente?
Perdida no gigante corredor escuro, Carolina tentou, uma e outra vez encontrar o caminho de regresso. Não havia. Era como se estivesse a mergulhar no mar alto, atingindo aquele ponto em que já não se sabe se se nada em direcção à superfície, se pelo contrário, se vai afundando devagarinho. Caminhou mais um pouco no chão vazio de cor, suspensa no nada, até que um pequeno ponto luminoso, como um pequeno e tímido pirilampo, tremeluziu à frente. Correu na sua direcção, num sprint que rapidamente lhe tirou o fôlego. Outro pontinho minúsculo de luz juntou-se ao primeiro. Carolina lançou-se novamente para a frente numa corrida desenfreada. Não lhe parecera tão longe da primeira vez. Talvez no inferno as pessoas ganhassem mais acuidade visual, uma espécie de superpoder para atormentar, ainda mais, as almas em desespero.
Não sabia o que fizera para ter semelhante fado. Tentara sempre fazer o seu melhor, escolhendo a menos má das hipóteses. Não prejudicara ninguém, não atropelara ninguém para chegar ao topo. Todos os meses contribuíra para causas solidárias, umas ezes mais outras menos. Não se metera em vidas que não eram da sua conta. Onde errara? O que fizera para merecer este lugar? Se todas as suas escolhas foram feitas com consciência, se todas as noites conseguiu adormecer sem peso na alma, se sempre fora boa pessoa… Porque veio aqui parar?
Tomás.
Não, não podia ser. Fez tudo o que podia por ele. Aguentou o casamento até onde pôde, mesmo quando já não havia qualquer relação e ambos se odiavam: ela porque ele se recusava a seguir o tratamento, ele porque estava em crer que ela o manipulava. Terminou o casamento, porque já não suportava mais uma relação tão conflituosa e tão cheia de rancor. Ninguém a podia culpar por isso.
A não ser ela própria.
E, sendo completamente sincera consigo, havia uma pontinha de culpa a querer pular do lugar recôndito onde permanecia guardada? Não a culpa de querer uma mudança segura numa vida sem norte. Não a culpa de ter agido em prol da sanidade mental dela e da filha. A culpa não fora de Carolina, a doença e consequente decadência Tomás, não eram culpa sua.
Mas o depois talvez fosse.
Quantas chamadas por dia recebia do ex-marido?
Quantas atendia?
A quantas mensagens respondeu?
Quando fora a última vez que se dignara a falar com ele?
Ele tinha-a magoado. Muito. Garantira que estava mudado, que as coisas estavam finalmente a encarreirar, que até tinha arranjado um emprego. Tomás dissera-lhe isso numa mensagem, depois de ter tentado uns quantos telefonemas em vão. Carolina nunca respondeu. Ou pelo menos, não a esse assunto em concreto, talvez lhe tenha enviado uma mensagem, uns dias mais tarde, informado o dia e a hora a que poderia estar com Maria.
Era essa a culpa que sentia: de não lhe ter dado uma segunda oportunidade, de não ter acreditado que era possível mudar, de não estar lá para ele, para comemorar um emprego simples num supermercado ou para assistir ao seu esforço de retomar o fio à vida que deixara suspensa. Toda a gente merece uma segunda oportunidade, não era isso que apregoava aos sete ventos, nas suas reportagens?
Determinada a esquecer a culpa por momentos, Carolina focou novamente os dois pontinhos de luz na escuridão que a circundava. Já não eram só dois pirilampos. Eram vários, encaixados entre si, formando um pequeno foco luminoso. Correu para a luz, sem perceber que não se movia do lugar. As pernas rolavam, uma atrás da outra, numa passada ofegante e desesperada. A escuridão parecia passar a alta velocidade, mas a pequena lanterna manteve-se sempre no mesmo lugar, sempre à mesma distância.
Cansada, Carolina deixou-se cair no chão de nada, tentando conter as lágrimas que se formavam.
Lá longe, na pequena lanterna, outros pontos de luz juntavam-se aos anteriores. Como um retrato que se iluminava pixel a pixel.
Ao cabo de uns minutos, já não havia uma lanterna, mas um retrato iluminado de um rosto pequeno e redondo.
Sem o seu consentimento, as lágrimas rolaram cara abaixo e o peito abriu-se num grito mudo.
Fitou o rosto da moldura, murmurando um sem número de desculpas, entre uma nova torrente de lágrimas.
Correu novamente para ele. Novamente, não saiu do lugar.
Lá longe, o rosto sorridente e alegre parecia fazer troça do seu esforço.
Carolina percebeu então que o mais a amargurava, não era a culpa, n as ações, nem o que de pior tinha feito na vida.
O que realmente lhe rasgava o peito de dor, era nunca mais conseguir alcançar aquele rosto, nunca mais o ver ao vivo, sentir a pele suava debaixo da sua mão. Ver o brilho no olhar quando ria de entusiasmo. Eram tudo prazeres que já não lhe estavam destinados.
Como se a tivesse escutado, o rosto mudou de expressão para uma gargalhada muda. Era a personificação da felicidade em estado puro e tudo o que de melhor o mundo pode ter.
Era Maria. A sua Maria.