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A Caracol

Um blogue pseudo-humoristico-sarcástico. #soquenão #ésóparvo

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Experiências #3

- Tu estás parvo, Tomás?! Onde raio foste tu buscar essa ideia estapafúrdia? - não era a primeira vez que isto acontecia, Carolina sentia-se num déja vu, era discussão recorrente e ultimamente, bastante frequente. Mas desta vez, Tomás fora longe demais. 

É claro que ela o tinha visto. Era impossível não reparar no homem soturno que seguia atrás deles, em plena baixa lisboeta. Como um cão que segue uma pista, mas não tem ordem de ataque, Tomás foi no encalço deles, até à porta do hotel, subindo calmamente pelas escadas até ao 13º piso, onde teria lugar a reunião que apresentaria Carolina como diretora de conteúdos do canal em que trabalhava. 

Apostava em como Tomás contara os degraus, enquanto os subia de par em par. Sentiu o olhar dele fixo, penetrante e a sua postura rígida quando se sentou num dos sofás do átrio. 

Mesmo na sala, com a porta fechada e com felicitações contanstes por parte dos colegas, Carolina sentia-lhe a tensão, o nervosismo. Queria muito ir lá fora falar com ele, com calma, mas sabia que não seria escutada e tampouco conseguiria manter os ânimos leves.

A discussão começou no carro, ainda ela não tinha se tinha sentado e metade da direção da estação tinha os olhos cravados na sua figura trémula e ligeiramente envorgonhada. Não era todos os dias que uma mulher daquele calibre tinha um marido raivoso à espera.

- Eu vi Carolina! Não tentes ludribiar-me! Ninguém me contou, eu vi! - apontou-lhe o indicador acusador, como se ela tivesse acabado de cometer um crime.

- Viste o quê, Tomás?! Eu a almoçar com o meu chefe, amigo de longa data e que só por acaso é nosso padrinho de casamento, a subir com ele para o hotel com decorreu a minha reunião de apresentação como diretora de conteúdos?! - gritou, enquanto sentia a fúria crescer, dominando-a. Estava farta daquilo.

- Eu vi como tu olhavas para ele! Como lhe sorrias! Como abanavas a anca enquanto caminhavas à frente dele. Tu estavas a provoca-lo deliberadamente! Tal como provocas qualquer homem que por ti passe. Ou pensas que não sei? Que não vejo as trocas de olhares lascivos, hã? Pensas que sou parvo? Ou queres fazer de mim parvo? - Berrou ensurdecedoramente, enquanto pisava um bocadinho mais o acelador. Estavam quase em casa.

Num gesto automático, Carolina fechou os olhos e esfregou as têmporas. Procurou dentro de si a pouca calma que lhe restava e, quando a encontrou, falou o mais suavemente possível:

- Tomás, o que tu viste foi um almoço entre amigos. Tu sabes que o Luís é um dos melhores amigos do meu avô, viu-me crescer... Que sentido faria andar metida com ele? Pela enésima vez Tomás: não houve, nem nunca vai haver, nada entre nós.

Tomás assentiu, num gesto mecânico e muito pouco convincente. A raiva mal contida era facilmente percebida pela força com que segurava a manete de mudanças.

- Tens que parar Tomás. Não podes continuar com essa ansiedade, com esse nervoso miudinho que dá cabo de ti e te faz ver coisas onde elas não existem. Tem sido recorrente Tomás, acusas-me à frente de estranhos, à frente da miúda e agora à frente dos meus chefes? Qual vai ser a próxima? Vais insultar-me no meio da rua? Apontar-me o dedo e chamar-me de puta no meio de um restaurante só porque cumprimentei o gerente? - deixou que as perguntas pairassem no ar, enquanto ele estacionava o carro à porta de casa, preparando-se para a pergunta fulcral:

- Tomás, diz-me a verdade: tu começaste a medicação, pois não? Tu foste à consulta, ouviste tudo o que o dr. Henrique te disse, aviaste a receita na farmácia, mas nunca chegaste a abrir a embalagem, pois não?

Não se ouviu resposta. Apenas o bater da porta do carro, com uma força que não lhe era habitual. Viu-o subir as escadas de acesso ao apartamento, mas deixou-se ficar sentada, no carro, tentando descortinar o que o silêncio que sussurava. Não, era óbvio que não Tomás não tinha começado o tratamento. Era óbvio que estava pior, que já pouco empenho dedicava ao trabalho, perdendo um caso importante recentemente e não se preocupando em se redimir por isso. As perseguições eram cada vez comuns e embora não fosse agressivo com gestos, era-o em palavras e na postura. O ambiente familiar era praticamente inexistente, havendo apenas um esforço por manter as aparências quando Maria estava presente e mesmo assim, já tinha presenciado duas ou três discussões mais amargas.

Daqui para a frente, caso Tomás continuasse a rejeitar ajuda médica, a situação iria piorar drasticamente. Pensou em Maria e na memória que não queria que a menina guardasse do pai. Pretendia que o visse sempre como o homem que em tempo fora: seguro de si, assertivo, confiante, não este poço de ansiedade e ciúme em que se tinha tornado. Respirou fundo, saiu do carro e seguiu para casa. Ignorou o barulho de loiça a partir que vinha da cozinha, bem como o caos que estava instalado na sala e dirigiu-se ao seu quarto, fazendo uma mala pequena para si e preparando de seguida outra para Maria.

Deixou uma nota em cima da mesa de cabeceira, acariciando ao de leve o rosto da fotografia de Tomás que lá estava.

Decidida, com o coração apertado e esforçando-se por segurar as lágrimas que teimavam em rolar cara abaixo, Carolina saiu de casa. Lá dentro, os gritos continuavam, a loiça estalava e um casamento terminava.

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