Não sou uma pessoa grata
A gratidão está na moda - para mal dos nossos pecados, que já ninguém aguenta tanta gratidão nas redes sociais.
Incrível como somos todos tão gratos e o mundo continua com um rácio de humanidade, empatia e compaixão abaixo de zero. Por isso, e porque gosto de contrariar tendências, assumo publicamente: eu não sou uma pessoa grata.
Não agradeço cada enjoo e vómito da gravidez, apenas porque isso significa a vida de um bebé.
Não abençoo cada dor que a vida me deu, somente pelas lições que me trouxeram.
Não venero cada birra do meu filho, só porque sou mãe e ele é uma dádiva dos deuses.
Não me congratulo com cada falha de oxigénio e cada dor nas canelas, apenas porque sou capaz de correr.
Sou tão, mas tão ingrata, que nem sequer agradeço o ar quer respiro ou mais uma manhã com passarinhos a apitar numa gaiola - os do beiral da janela já os espantei há muito tempo.
A gratidão está na moda, mas até que ponto é efetivamente sentida? Até que ponto não se tornou, também ela, mais uma banalidade? Mais um mote para likes no instagram, porque é muito giro estar-se grato pelas estrias e celulite entranhada nas nádegas, mas com uma foto bonitinha e uma boa base que cubra a sacana daquela borbulha que decidiu entrar em erupção mesmo no meio da nossa testa.
A gratidão tornou-se o novo "amo-te" das redes sociais: banal, corriqueiro e dito a cada inspiração.
Ver o lado positivo da vida, o copo meio cheio, procurar no meio das nuvens uma brecha que deixe entrar o sol, não é ser grato. É saber sobreviver. É aprender que cair faz bem e não faz mal ficar no chão durante um bocado. É saber que não somos más pessoas apenas porque nos apetece não agradecer nada naquele dia ou nos seguintes.
Ser grato é estar lá quando todos os outros já foram embora. Quando já ninguém se lembra e já ninguém se importa. Ser grato é estar lá quando realmente é preciso e não só quando é suposto estar toda a gente. É ouvir o silêncio, porque nem sempre o diálogo diz tudo.
Ser grato é retribuir, sem likes, sem legendas, sem mãozinhas unidas e chakras alinhados.
Não sou uma pessoa grata, não venero todos os meus amigos, não vejo todos os dias o lado positivo da vida. E isso não faz de mim uma má pessoa: só uma pessoa normal, que retribui quando pode, agradece quando acha necessário, canta durante o trabalho para chatear os colegas e adora azucrinar a mioleira dos amigos.