Vamos lá, isto hoje vai ser sempr'andar. Siga. Foco no final. Alguém atrás de mim diz motivadoramente "Vamos lá qu'isto agora até aos Carvalhos é sempre a subir". Como se eu não soubesse e fosse a primeira vez que ali ia. Respira. Não penses. Corre.
2km
Faltam 8. O relógio que Cravei ao homem vibra no meu pulso, leio a mensagem "Fantástico! Objetivo cumprido!" e percebo que em vez de colocar aquilo em cronometro, coloquei em objetivo para 2km. 🤦
3km
Está um calor que não se pode. Apetece-me mesmo caminhar. Resisto à tentação do diabo e continuo a subir o inferno.
4km
Já disse que é sempre a subir? Ainda não? Pronto, é sempre a subir. E estava um calor do cacete. Os lábios rachados, os pulmões colados, o ar rarefeito e as pernas pesadas. A subida dos impropérios é aqui. E odeio-a.
5km
ÁGUA! H2O! Ao abrir a garrafa, perdi a tampa. Bebi dois goles e pensei em guardar o resto, correndo (agora a descer) com ela aberta muito direitinha na mão. Obviamente não resultou, pelo que encharquei a T shirt, pelo menos tinha proveito no desperdício.
6km
Estamos em agosto, às 2 da tarde. Ou isso ou no inferno. Não sei o que me dói mais: se a falta de água, se as pernas, se o pó que aloja nas vias respiratórias e faz comichão no palato, se o arrependimento de estar aqui outra vez. A última, definitivamente, por isso autoflagelo-me em mais uma pequena subida que dói como mil brasas incandescentes em todo o lado.
7km
Mais uma subida. Curta e grossa. Apetece-me fazê-la a rastejar, mas contento-me com uma passada ligeira. O sol é implacável e dou comigo a pensar que se aplicar um golpe à Van Dame na nuca da moça que vai à minha frente talvez lhe consiga sacar a garrafa da água.
8km
Dou um rim por água. A sério, não preciso de dois, sobrevivo bem só com um. Corro pelo passeio para tentar apanhar o máximo de sombra, não dou conta de paralelo mal colocado e calco-o em força. O tendão queixa-se, eu continuo.
9km
Quero morrer. Agora. O tendão continua a ganir baixinho.
9.5km
As solas parecem feitas de uma goma que derrete e cola ao chão, mas está quase e só quero mesmo que acabe.
9.700km
A pista é ENORME. NUNCA MAIS ACABA. O quê?! Olha-me agora esta caramela a querer passar-me à frente. É que nem penses minha menina. Não andei eu a chegar até como carne desitratada para agora me passares a perna. Era só o que mais faltava. Entraste comigo no estádio, por isso só tens soluções: ou acabas comigo ou ficas para trás. Agora despacha-me esse rabo! (Esta última já foi de mim para mim).
10km
Passamos juntas e posso jurar que lhe ouvi um obrigada. Não percebi, porque na minha cabeça todos os rostos tinham a forma de uma garrafa de água. Uma hora e seis minutos depois da partida, cheguei finalmente ao fim. Se foi um bom tempo? Eh, podia ser melhor. Mas também podia ser pior. É a terceira vez que faço a Petrus e de todos, este foi o pior tempo. Mas também foi aquela que fiz com menos preparação, tendo em conta que só recomecei a correr há pouco mais de um mês e que foram quase dois praticamente parada. Se estou frustrada? Nem pensar! Foi espetacular! Tenho 30 anos e 30 km de Petrus nas pernas, hã? Respeitinho. No final disto, descobri aos 30 que afinal gosto de papas de sarrabulho. Era quem me batesse por todas as vezes que lhes torci o nariz.
.... durante a corrida lá mais para o final, senti uma dor na anca. Nada de extraordinário ou sequer impeditivo de continuar, mas estava a lá e continuou até bem depois de ter terminado. Esperta como só eu sei ser, fui ao Google e escrevi as palavras "dor na anca durante a corrida".
Corri esta manhã o que dizia, há três meses, ser impossível. Que não era para mim, que não era capaz, que ia atrapalhar, que já os restantes estariam na meta e eu às voltinhas, arrastando-me para lá chegar, isto se conseguisse efetivamente chegar ao fim.
Já estava mentalizada que era capaz (falei sobre isso aqui), mas nunca, nem por sombras, julguei terminar num tempo tão curto. Corro há tão pouco tempo, demorei uma vida e meia a ultrapassar a barreira mental, levei 1:07 a percorrer 9 km... Tinha mentalmente estipulado 1:15 para terminar e ficaria felicíssima se conseguisse fazer esse tempo. Fiz menos. Muito menos. 1:03 foi o tempo que demorei a percorrer os 10 km. Caraças, vou ser a maior da rua durante a semana toda! (Sim, estou um bocado orgulhosa, mas é só um cadito, quase não se nota. :P) Para além disto, levamos para casa o terceiro lugar em equipa feminina e açambarcamos o pódio todo em Juniores femininos. Uma manhã do caraças!
Não posso, nem quero, deixar de agradecer a quem me meteu nisto. Não sei bem quem me inscreveu (sim, já estava inscrita quando me inscrevi efetivamente), mas aposto as fichas todas numa menina cujo nome começa com C, termina em A e tem as letras L, A,U,D e I lá pelo meio. Uma grande beijoca e muito, muito obrigada por teres feito aquilo que eu não faria.
Obrigada à família, com quem pude contar para depositar o puto enquanto ia correr, ao marido que preparou um almoço divinal (e que cumpria os requisitos dos 30 dias sem porcarias), aos amigos que mandaram mensagens de apoio, à Cunhada por me estar sempre a azucrinar a cabeça e pelas mensagens altamente motivadoras.
Por último, mas não em último, um grande obrigada a toda a família fit que acolheu esta preguiçosa. Que todos os dias motiva, acompanha, desafia e supera. Dos monitores, aos compinchas, passando pela incrível claque - foi muito, muito, bom aquele apoio final, quando já só pensava em sopas e descanso e a meta ainda me parecia tãoooooo longe, apesar de já estar mesmo ali, a uns míseros passos.
Passar a meta é uma sensação absolutamente fantástica. Começamos com ela em mente, paira no espírito a cada subida, dá ânimo a cada metro que dela nos aproximamos. Aquela sensação de chegar ao fim por si só, não olhar para o relógio, esquecer a dor nas pernas, a fadiga e ficar só ali a desfrutar dos curtos segundos em que dura aquela alegria em estado puro... Se não é das melhores coisinhas desta vida, anda muito lá perto. Sentir que pertencemos a um lugar, a uma equipa - mesmo sendo por nós e para nós que corremos - saber que temos alguém à espera, alguém que passa por nós e diz "vamos lá", saber que há quem corra connosco, mesmo que não vá ao nosso lado. Isso dá energia extra. É o impulso para mais uns metros, para o bocadinho que falta. "Não vais sozinha", garantiram-me a meio da minha indecisão inicial, no começo dos começos. E não fui. Nenhum de nós foi. Porque quando pertencemos efetivamente a um lugar, nunca estamos sozinhos. O melhor de tudo é o que os olhos não vêem, farto-me de dizer isto. A união é uma dessas coisas. Isso foi notório hoje, mais uma vez. Além da minha vaidade pessoal, tenho um imenso orgulho de todos aqueles com quem partilhei a camisola - mesmo quem não pôde partilhar o alcatrão, hoje.
Agora, venha a próxima, que as minhas sapatilhas ainda têm muito sola nova!