E agora?
Foi impulsivo, assumo, deveria ter pensado melhor, delineado uma estratégia, mas... não há uma lei qualquer da vida que diz que devemos esquecer os planos de vez em quando? Que devemos ser espontâneos, em vez de certinhos?
É, não é? Então pronto, fiz a coisa certa: limpei o carro.
Até aqui nada de mal. O problema é que ele agora cheira a pinho. E eu faço alergia ao pinho. E não o sinto como meu. Já olhei três ou quatro vezes para o interior das portas e nem um lenço de papel usado à vista. Nem uma embalagem de bolachas vazia. NA-DA.
E o chão? Sabiam que o chão do meu carro é preto? Também não me lembrava. Já há muito tempo que me habituara ao camel da areia. E pedras? Nem um calhauzinho debaixo do tapete. Nem uma pequena rocha no assento do passageiro. Nem... Nem um pedaço de granito ao pé da manete das mudanças. Está tudo limpo e imaculado e cheira a pinho. Já disse que cheirava a pinho?
O problema, para além de ter sido estúpida o suficiente para aspirar areia e não a vender para as obras ilegais, é que estou com problemas de ligação ao bólide. Sinto que lhe fiz um bem maior, mas já não me sinto ligada a ele. Não o sinto como meu. E isso dói, bem lá no fundo, ao pé dos calcanhares. Ah, não, espera, isso é só o tapete que ficou dobrado debaixo do acelerador. Bom, mas dói e temo que a nossa relação não possa vir a ser a mesma de antes. Temo que agora me dê máximos, cada vez que não sacudo os pés do miúdo quando voltamos da praia (e os meus também...). E se me buzina aos ouvidos quando enfardar pipocas lá dentro? Ou batatas fritas. Pior: se lhe dá uma síncope quando sentir o caroço de uma ameixa, embrulhado às três pancadas num lenço de papel, abandonado sabe-se lá até quando no interior da porta.
E se... E se... Se o meu carro, de repente, se transformar no meu homem?
Pronto, está decido. Vou obrigar o miúdo a brincar com terra na mala. Só manter um certo nível de charme naquele carro.