Passo a vida a dizer isto. Não muito alto, não quero que outros ouçam a minha insegurança, mas digo-o silenciosamente, para mim.
Digo-o quando desço as escadas molhadas em direção à lavandaria, sabendo de antemão o perigo de escorregar.
Digo-o quando subo a uma cadeira para chegar a uma prateleira mais alta.
Digo-o quando forço um bocadinho e sinto a lombar a picar.
Digo-o todos os dias, quando olho para o meu filho mais velho adormecido: acho que a coisa não vai correr bem.
Tenho medo. Muito medo.
Medo que a rapariga se antecipe e conheça o mundo antes do tempo.
Medo que fique internada dias a fio e eu sem saber se me vire para a mais nova se para o mais velho.
Medo da ansiedade que a minha estadia no hospital vá provocar em casa.
Medo de precisar de mais dias do que os dois com que fervorosamente acredito precisar.
Medo que a primeira reação não seja a melhor.
Medo de não estar à altura de dois filhos tão pequenos.
Medo de a coisa não corra bem e não segure todas as pontas, como sempre me habituei a fazer.
Medo de lhes falhar, de não conseguir estar lá para eles, da mesma forma e com a mesma plenitude que para um.
Mas depois... Depois, lembro-me que isto é, no fundo, a única melhor coisa que poderia acontecer.
Lembro-me como vai ser giro voltar a ter um bebé, apesar do que tudo isso implica.
Lembro-me que tudo aquilo que o Caracolinho sempre pediu foi uma mana e, mesmo passando pela inevitável adaptação e possível rejeição à rapariga, vai adorar ter alguém para ler histórias e brincar ao faz de conta.
Lembro-me o quanto odiei ser filha única, o quão pesadas são as cargas quando só existe um para equilibrar com a barra.
E por isso, mesmo sabendo que haverá dias que a coisa não vai correr bem, guardo o medo no bolso pequenino das calças de ganga que agora não servem, para me lembrar dele quando as coisas correrem bem.
O vento soprava furioso e impedioso, arrastando consigo o inverno gelado.
Ana, que mal conseguia andar, vislumbrou ao longe Kristoff e forçou as pernas na sua direção.
Ao mesmo tempo, Hans desembainha a sua espada para o último e derradeiro golpe: aniquilar uma Elsa vulnerável.
Numa última tentativa de fazer o que está certo, num último grande gesto de amor verdadeiro, Ana defende a irmã, congelando ao último suspiro.
- Resultou? - pergunta por cima do ombro.
- Tal como previste querida. És um génio! Mas... E agora? Ela não vai descongelar, já que este foi o seu último acto de "amor verdadeiro?" - questionou Hans.
- Querido, por algum motivo eu nasci com poderes e não a tonta da minha irmã.
Aproximando-se da estátua gelada de Ana, Elsa canta sinistramente enquanto pequenos flocos de neve que saem das suas mãos se acomodam na pele gelada da irmã:
Vem fazer bonecos de neve? Há um que é só teu
- Magnífico! - aplaude Hans - E... os outros? - questiona apontando para Kristoff, Olaf e Sven.
Elsa encara, pela primeira vez depois daquele momento, os três pares de olhos que a fitavam com desconfiança, horror e estupefacção.
Numa atitude algo teatral e cuidadosamente encenada, pergunta:
- Oh! Não me apercebi que estavam aí... Que horror! Que fui eu fazer? A minha única irmã...!
Olaf abriu a boca para tentar falar, mas um raio de gelo atingiu-o antes sequer de o conseguir fazer.
O mesmo aconteceu à rena e ao dono, eternamente convertidos em estátuas geladas, quedas e mudas. Para sempre petrificados.
- Achas que cabem no jardim do palácio, querido? Não me apetecia olhar para eles sempre que estiver no salão.
- Arranja-se maneira, meu pequeno floco de neve. Tratas da nuvem de inverno para os manter assim e eu trato de os colocar a decorar o jardim. Vai ficar lindo no Natal!
Não fora assim que imaginara a sua vida aos 32 anos.
Nunca julgou ter que tomar decisões tão importante antes do meio século de vida. Pensando melhor, nem sequer tinha pensado que existissem decisões deste calibre, muito menos que a liberdade de dizer "não" lhe fosse tão cara.
A maioria dos seus amigos não compreende, acusando-a de cobardia e de seguir pelo caminho mais fácil. Os poucos que foram ficando ou raramente apareciam fisicamente ou apenas telefonavam sem saber muito bem o que dizer.
A família ia aparecendo, sempre com a pena a pairar nas íris. Raramente com palavras para mais de cinco minutos de tempo.
A mãe suportou como pôde, aguentando o barco no meio da tempestade. Até ao dia que afundou na própria impotência.
O pai raramente a olhava nos olhos. Não o censurava: era difícil para um pai aceitar aquela decisão de uma filha.
O namorado ficou durante algum tempo, até ao dia que lhe pediu por tudo para mudar de ideias. "Tenta Beatriz, pelo menos tenta" - pedira-lhe desfeito em lágrimas. Ela deixou-o ir, não lhe podia pedir para ficar quando a decisão que havia tomado lhe provocava tanta dor.
Só a irmã ficou. Inabalável, acomodada às dores constantes - a sua e a de Beatriz - superando a frustração da impotência com um livro, completando o silêncio com uma presença constante. Às vezes chorava silenciosamente. Outras vezes choravam as duas, numa torrente de lágrimas e soluços entre cortados.
Não fora assim que imaginara a sua vida aos 32 anos.
O rosto magro e macilento. Um corpo outrora roliço e vistoso, carcomido por um demónio invisível a olho nu. Sugada de dentro para fora. Entrelaçou as falanges finas e débeis. A respiração pesada lembrava-a do quão fina era a corda que a amarrava a vida. Estava cansada. Agora, estava sempre cansada.
- Não vou estar com paninhos quentes, Beatriz. - dissera-lhe o médico, numa outra vida - Tem um osteosarcoma de grau IV. Muito difícil de curar, mas com algumas possibilidades de tratamento. Com o protocolo de quimioterapia combinado com radioterapia, talvez consigamos mais dois anos.
O mundo caiu. Dois anos? Vinte e quatro meses? Não queria dois anos, queria a vida toda. Ou tudo ou nada.
Escolheu o nada e o tudo.
Há seis meses, dissera que não a um sofrimento que lhe parecia atroz e um aditamento de uma morte que, sentia agora, estava iminente.
Era mesmo fixe que eu não tivesse feito aqui alta confusão com os temas, não era?
Desculpem e lembrem-se que estou grávida, logo o meu cérebro baralha a informação que me é dada. Não que fosse impossível isso acontecer no meu estado normal, mas se a gestação pode ser uma desculpa... Então que sirva para isso mesmo.
Aventuras tenho várias, como sabe quem me lê mais assiduamente e decidi que não ia por aí.
Momentos também tenho vários: o dia em que fui mãe, o dia em casei, o dia em corri a primeira prova, o dia em que descobri que estava novamente grávida, enfim são muitos.
Contudo, para hoje, escolhi o momento que todos tentamos evitar. Que tentamos contornar e florear nas palavras, tornando-o menos denso, menos doloroso, menos negro.
Falemos da morte.
Não é fácil o momento em que ela nos bate à porta, senhora de si e da sua sabedoria, numa pose de quem chegou e não arreda pé sem levar o que quer.
Costumo dizer, quando falo nas minhas mortes, que já tive dois funerais: o do meu pai e o da minha mãe. É inevitável não considerar aqueles falecimentos como meus, porque uma grande parte de mim também quinou naqueles dias.
Renasci, alguns tempos mais tarde, não inteira ou sequer como era antes, apenas diferente. Aprendi de novo onde pertencia, que caminho escolheria e como poderia ser. Descobri que a morte não é um bicho papão e que o maior cliché do mundo é também a maior verdade: é tão natural morrer como nascer. Aprendi a lidar com a dor, guardando-a sempre comigo e fazendo as pazes com ela. Às vezes tomamos chá juntas. Nesses dias, peço um bolo de chocolate a acompanhar. O chocolate torna tudo melhor, até as dores da morte.
Aprendi com ela, a morte, que a vida só faz sentido estando casada com ela. De que outra forma valorizaríamos tanto o sol, se não existisse a noite?
Não sei se lhe perdi o medo, gosto de pensar que sim, mas lá no fundo sei que não. Não por mim, não me assusta a minha não existência, mas pelos meus: morro de medo que a morte me leve mais alguém. Por isso mesmo, aprendi a respeitá-la: brinco com ela, satirizo-a, chego até a ridicularizá-la, mas tenho plena consciência que, no fundo, isso não lhe retira nenhum poder. Pelo contrário, aumenta-o. Já a mim, mantém-me consciente de que ela existe, a cada esquina, a cada curva e cada falha de um batimento cardíaco. E acredito, mesmo, que é uma gaja com um sentido de humor do caraças e que não me leva a mal. Se levar... Que se amanhe, que eu também me amanhei quando me tirou o chão.
Aurora encolheu-se um pouco mais, enroscando-se sobre si mesma, como se pretende-se desaparecer entre os cobertores da cama vazia.
Deixou-se afogar num choro inconsolável e silencioso.
Que fizera para merecer semelhante fado? Que raio de karma era este que lhe tirava o tapete do chão, uma e outra vez? O que fizera de errado? A culpa era sua. Tinha que ser sua. A quem mais cabia a função de proteger uma vida em curso, se não à mãe? De nada adiantava os médicos argumentarem que não a culpa não era dela, que não havia que pudesse fazer para impedir.
"São coisas que acontecem" - dissera-lhe a doutora Irene.
Só que para Aurora, já era a terceira vez que "as coisas aconteciam" e desta vez esteve tão perto do limite temporal estipulado, permitiu-se sonhar mais alto, ver além do número 12, voar para lá do medo. Um luxo que lhe custou uma queda demasiado violenta. Não conseguia aguentar-se sequer de joelhos e tampouco saberia quando iria conseguir levantar-se.
No torpor de um corpo dormente e dorido pelo constante soluçar, chegou-lhe a sensação acolhedora de um abraço. Uma nova torrente lágrimas molhou-lhe o rosto, o corpo foi sacudido por novos soluços. O abraço ficou mais apertado, cingindo-a num aconchego familiar.
Instintivamente, num acesso de fúria, tentando manter consigo a dor que lhe queimava a alma e recusando qualquer consolo, Aurora desferiu um estalo na face de Jorge. Primeiro um, depois outro, outro ainda, tentando a todo o custo libertar-se do abraço que ele insistia em manter apertado. Não queria consolo, não queria pena, queria que a culpasse também que a odiasse, que dissesse que era pior mulher e a pior mãe do mundo.
Quando por fim se cansou, a fúria deu lugar ao vazio. Pela primeira vez, naquilo que lhe parecera muito tempo, Aurora não sentiu nada e deixou-se levar pelo torpor que lhe invadia o corpo.
- Não estás sozinha. Eu vou estar sempre contigo. Desculpa se falhei. Não estás sozinha. - foram as últimas palavras que ouviu, antes de mergulhar num sono profundo.
- Então S' Alberto, que lhe aconteceu agora, homem? - perguntou Toninho, dono do café onde Alberto tomava a bica, todas as manhãs.
- Olhe Toninho, é este tempo: ora chove, ora faz sol e o nevoeiro dá-me cabo da âncora, fico aqui a ganir de dores.
- Isso é fruto da idade, o S'Alberto já vai nos setentas...
- Pois Toninho, mas as dores sou que as sinto. Olhe, sabe o que lhe digo? Problemas, só problemas.
- Não seja assim, homem! 'Tão já viu que há gente bem pior? Olhe, a Almirinha, por exemplo. 'Tão não é que partiu a bacia porque escorregou nas escadas? Está pr'a lá toda desconchavada.
- A Almirinha está desconchavada?
- Muito S'Alberto. Os médicos nem sabem quando vai ter alta do 'ospital.
- Oh, minha vida! 'Tão agora quem é que me vai lá casa ajudar a minha Alzirinha nas lides de casa? - suspiro - Problemas, só problemas.
- Logo arranja alguém para isso, não fique tão carrancudo homem! Qu'importa é qu'Almirinha melhore, não é?
- Pois, pois...
- Olhe, quem também está muito mal é o Zé da venda.
- O Zé? Qu'lh'aconteceu?
- Consulta de rotina, o médico mandou fazer exame à prósteta e olhe... Câncaro. Já começou a quimoterapia, coitadinho, disse-me a Ti Luzia, que o homem está um farrapo.
- Valha-me Deus!
- Já viu? Há gente bem pior, num é S'Alberto?
- Pior? Pior Toninho? Então agora com o Zé da venda assim, quem é que me vai levar as mercearias a casa? A Ti Luzia não tem carta... Estou para ver como vou resolver. Problemas Toninho, só problemas.
Ora bem, para começar, porque faço parte do bando. Não sou pássara, comajoutras, sou só passarinha. (Ficou estranho, não ficou? Mas é só uma alusão à...hmm...idade. Não melhorou. Sigamos.)
O meu estatuto de ave, garantiu-me acesso livre a esta enrascada, por isso... Cá estou eu.
A segunda parte, sendo mais sincera, é que o blogue tem cada vez menos espaço na minha vida digital. Ora porque o facebook está mais à mão, ora porque as publicações são curtas e não acho que façam sentido aqui, ora porque me esqueço. E eu queria, mesmo, voltar a estar mais activa por aqui, por isso este desafio que pareceu-me o ideal para retomar, aos pouquinhos, a este espaço.
Depois, porque estou numa fase em que me sinto limitada - um dia destes conto - parece que nada flui do meu cérebro como antes e não me sinto a mesma idiota que era há uns meses. O desafio acaba por ser uma alavanca para imaginação que considero já perdida e uma forma de a trabalhar um pouquinho mais. Ou então não, desisto e fico a meio. Logo se vê.
Outro ponto que me levou a meter nisto: inscrevi-me, recentemente, no campeonato de escrita do Chagas Freitas. Ia cheia de vontade, cheia de ideias, toda eu a maior da minha rua e... Fiquei desiludida. Não porque não ganhei nenhuma jornada, mas por que (e eu sei que isto vai parecer presunçoso, desculpem) não achei que nenhum dos textos vencedores fossem melhores que os meus. Acabei por não perceber em que consistiam as avaliações, a motivação caiu tão a pique como a minha tensão arterial em dias de 38º e dei comigo a desmarcar presenças. Daí a achar esta ideia da Magda (já tinha dito que a culpa foi da Magda, certo?) brilhante, foram....Três microsegundos.
Et voilá. Cá estamos nós, anos depois do primeiro contacto unjecojoutros, a mexer novamente com a bloga. E caraças, se isso não é bonito, que eu não tenha lacrimejado uma vez quando vi o número de inscrições.