Amo-o. Imensamente e mais que tudo. Não me importo de ser a segunda escolha, porque na realidade sei que o seu pensamento vai primeiro para mim e só depois para quem oficialmente o tem. Nunca me vai perguntar o que é o jantar, nunca iremos programar férias juntos e nunca poderemos sequer ter uma família digna de ser chamada assim. A família dele odeia-me com todas as forças, mesmo não me conhecendo o rosto, e isso no fundo deixa-me feliz: é sinal que ele existe e que fica comigo algum tempo. O tempo em deixo de ser a segunda escolha e sou a primeira e única escolha. São os melhores minutos do meu dia, os que fazem todos os outros valer a pena, os que transformam horas de solidão em segundos de felicidade.
Sou a segunda opção de alguém e isso não me entristece. Não me custam as horas intermináveis sem ele, as conversas inexistentes sobre trivialidades ou a inveja de quem partilha a cama à noite, porque eu sei que ele volta sempre para mim, para a sua segunda escolha. Ou deverei dizer primeira?
Escrito no âmbito de um desafio, num grupo de escrita criativa sob o tema "Traição".
Apenas três anos antes, tudo corria sobre rodas. Tomás tornava-se cada vez mais importante na sociedade de advogados onde trabalhava, Carolina subia a pulso a escada do jornalismo, Maria crescia feliz e sadia, sem grandes sobressaltos que não a ocasional otite ou diarreia.A vida de casal ficava-lhes bem. Longos passeios ao fim de semana por Belém, Cascais ou Sintra, uma vida social recatada com poucos mas fiéis amigos, tanto do tempo da escola como provenientes dos diferentes ramos profissionais que ocupavam, jantares a dois em restaurantes intimistas, férias a três nas luxuosas propriedades construídas pelo avô, tudo lhes corria bem. A conta bancária engrossava na mesma medida do sucesso pelo que optaram por colocar Maria num dos melhores colégios privados de Lisboa, no Lumiar, a cinco minutos a pé de casa, um duplex de último andar num dos melhores condomínios da zona. O gabinete de Tomás e o escritório de Carolina situavam-se a dez minutos de carro e os seus horários permitiam fugir ao trânsito, uma vez que Carolina saía de casa bem cedo e Tomás apenas depois de levar Maria a pé ao colégio e tomar o pequeno almoço numa das muitas Padarias Portuguesas que pululavam pela capital. No entanto, uma sombra pairava naquele quadro pintado a cores tão alegres. Havia dias em que Tomás se alheava, fechava no escritório de casa e estudava até à exaustão os adversários que se lhe atravessavam na barra do tribunal. Sempre que se aproximava uma sessão importante, Tomás não raras vezes estava ainda ao computador quando Carolina estava a sair para o seu trabalho. Uma vez e outra, Carolina não questionava os métodos do seu amado esposo, no entanto essas noites em claro começaram a pesar no casamento. A falta de afecto do seu marido fez com que Carolina ficasse receosa de que algo não estava bem e a paranóia instalou-se. Não raras vezes ela perscrutava o telefone dele por sms ou chamadas de outras mulheres. A conta do Facebook estava constantemente aberta no iPad última geração, pelo que também lhe era fácil aceder-lhe. Começou a criar contas em sites de convívio, não com a intenção de trair o seu marido, mas apenas à procura dele. Não era possível que ele passasse doze horas a estudar o adversário pois não? Tinha que haver outra fêmea a querer apoderar-se do seu macho amado, aquele que tantas vezes não se parecia cansar do seu corpo mas que nos últimos tempos mal olhava para ela quando se despiam juntos antes de irem para a cama, nas raras noites em que iam juntos. E sexo... Tinha-o mais com o pequeno vibrador cor de rosa escondido na gaveta da lingerie "especial" que raramente usava do que com o marido e, mesmo quando o tinha, era ela quem quase tinha que o violar, pois ele andava distante e concentrado apenas no seu papel de rockstar dos tribunais.
Certa sexta-feira, Carolina pede à mãe para ficar com a pequena Maria durante o fim de semana e telefona ao dono da exclusiva propriedade na Comporta construída pelo avô, a reservar um bungalow para o fim de semana. Recebe as instruções de pagamento e telefona ao marido a confirmar a disponibilidade. A Chamada durou pouco mais que o tempo necessário para ele dizer um sim meio distante e nada animador. Ainda assim, Carolina enche-se de coragem, efectua o avultado pagamento, corre para casa, veste uma das suas ingerias especiais e um catsuit preto tão do agrado de Tomás e após preparar uma pequena mala com os elementos essenciais para dois dias românticos no Alentejo, abre uma garrafa de vinho e despeja um copo para acompanhar um livro enquanto aguarda a chegada do seu amado. Acorda às duas da manhã de sábado toda torcida no sofá e procura o marido pela casa, julgando que ele não a tinha acordado para não incomodar. Ao não encontrá-lo, procura no seu telemóvel uma explicação para o sucedido, mas nem uma sms nem uma chamada. Antes de lhe ligar, liga a pesquisa do telemóvel e procura o telemóvel do seu marido, verificando que se encontra na zona do Chiado e Cais do Sodré em vez de nas Avenidas Novas no seu escritório. Furiosa, telefona-lhe para apenas receber como resposta música de fundo ensurdecedora e grunhidos alcoolizados. Desce até ao carro e dirige-se para a zona o mais rápido que pode, descobrindo-o num dos bares mais reles da zona, com duas jovens seminuas a dançarem com ele, gravata enrolada na cabeça e os colegas de escritório a rirem às gargalhadas num privado próximo. Quase que o arrasta dali para fora e conduz furiosamente até à Comporta, numa vã tentativa de salvar o fim de semana. Efectua rapidamente o check-in enquanto ele ressona no banco do pendura e transporta-o grosseiramente para a cama, nem se preocupando em despi-lo. No dia seguinte ao pequeno almoço, estala a pior discussão de sempre. Ele nem se recordava da chamada dela a confirmar o fim de semana e apenas saiu para se divertir com os colegas. Não lhe tinha ligado porque eram quase dez da noite quando saiu da reunião e calculou que ela tivesse saído com as amigas, como fazia quase todas as sextas-feiras. Pediu desculpa e prometeu não repetir a asneira. As palavras dele caíram que nem uma bomba e Carolina apercebeu-se que aquele homem que aprendera a amar intensa e incondicionalmente já nem sequer se preocupava em dar-lhe uma satisfação quando saía com os amigos. Quando é que ela, sempre tão independente e no controlo das coisas, deixara que o seu casamento, de que tanto se orgulhava, caísse neste ninho de ratos? Não tinha sido isso que o seu pai lhe tinha ensinado, pois não? Recordou as sábias palavras. Primeiro os filhos, depois ela própria, depois sim os homens. Estava na hora de transformar radicalmente a sua vida. Ameaçou Tomás de que, à próxima, desaparecia da vida dele e nem sequer o deixava ver a filha e foi sozinha para a praia. Meia hora depois, Tomás chega com ar desconsolado à praia. Carolina deitada numa espreguiçadeira com um livro como companhia nem olha para ele enquanto se instala ao seu lado. Resolve naquele momento que está na hora de se sentir melhor, mais mulher. Como tal, retira a parte de cima do seu já reduzido bikini e caminha resoluta e bamboleante para o mar, sob o olhar guloso dos homens que estão por perto e o cenho recriminador das mulheres que os acompanham. Nem dez minutos depois Tomás está a seu lado, arrependido e manso como um cãozinho de colo. Ignora-o propositadamente e vai meter conversa com o nadador-salvador, um jovem de vinte anos no máximo com físico de porteiro de discoteca e olhar de ave de rapina para os seus seios cheios e redondos. Duas gargalhadas depois lá está novamente Tomás por perto, a tentar intrometer-se na conversa e a querer recolher o que é seu. É nessa altura que passa o jovem que vende Bolas de Berlim, pelo que com um sorriso sedutor para o nadador salvador afasta-se e caminha como se numa passerelle até ao jovem e pede uma bola de berlim com creme, estende uma nota de dez euros e trinca o doce com um gemido de prazer tão sedutor que faz com que o moço se atrapalhe e se perca no troco que está a fazer, espalhando moedas pela areia.
Tomás, fulo, recolhe ao bungalow, chama um táxi e vai para casa.
Texto da autoria de Mário Pereira, como seguimento da história que temos vindo a construir.