Escrever para não esquecer
Preciso disto, preciso de gerir a emoção, de colocar tudo no sítio certo e as palavras ajudam nesse sentido.
Estou cansada, o corpo pede o colchão, mas os dedos querem o teclado.
Estou cansada, mas nunca me senti tão bem. Inacreditável, não é?
Estou emocionada. Verdadeiramente emocionada. Corri nove quilómetros. Nove. Em pouco mais de uma hora.
Sei que muitos dos que me lêem correm bem mais que isso, sei que não é uma maratona, nem sequer uma meia, tampouco um trail. É só uma corrida de 10 km, numa terra que quase ninguém conhece, mas que tem as subidas mais implacáveis que já vi.
Nunca corri.
Nunca.
Demorava uma eternidade a fazer o teste do cooper em educação física e fartava-me de caminhar numa tentativa vã de fazer o tempo passar mais depressa. Aldrabava as voltas à escola, engonhando sentada nas escadas a fazer tempo para retomar "a corrida." Sempre fui "a caracol", por isso: pela falta de empenho e motivação no exercício físico.
Sempre achei que não precisava disto para nada, bastavam-me as palavras, as baboseiras debitadas num tasco praticamente anónimo.
É por isso que cada quilómetro, cada metro percorrido, são uma alegria, uma festarola. E é por isso também que isto não 10 km, são OS 10 km, os primeiros e os mais especiais. Mesmo que faça disto rotina, que consiga fazer mais metros ou menos tempo, estes ficar-me-ão guardados na memória, na gaveta das ocasiões especiais. Não tenho a menor dúvida.
Tal como a corrida de hoje.
Éramos poucos, menos que o costume. Faltavam alguns compinchas fofinhos cujo ritmo sou capaz de acompanhar e chegou-me logo a informação de que seria "o percurso total".
Engoli em seco. Só lá estava "malta da pesada", como raio ia eu ter pernas para os acompanhar?! Ponderei seriamente a ideia de arranjar uma dor de barriga e ficar por ali. Mas não. Fui, mesmo com medo.
Medo do número. Dez mil metros é um número gigante. Saber que o objectivo era esse, que seria cada um no seu ritmo, deixou-me com algum receio de desmotivação.
Medo de ficar sozinha. Ali a meio, dei-me conta que, caso parasse ou ficasse demasiado para trás, ficaria efectivamente sozinha. Não havia mais ninguém atrás. Não tinha medo de me perder, óbvio que não, mas senti claramente a desmotivação aproximar-se. Parte da segunda metade foi em grupo, em silêncio, cada um lutando contra os seus próprios demónios e enfrentando o alcatrão.
Tive que abrandar e caminhar uns metros a meio da subida. Não fui a única e isso deu-me algum alento.
Éramos dois, cansados, esforçados, pensando que era só mais um bocadinho.
Não recomeçamos ao mesmo tempo, foi ficando para trás, ainda que ligeiramente, muito ligeiramente, mandou-me correr, que ia bem.
Corri parte do trajecto sozinha, espreitando por cima do ombro, e foi aí que me dei conta: mesmo que ficasse sozinha, eu conseguiria continuar. Mesmo que tivéssemos os papeis invertidos e eu fosse atrás, era capaz de não desmoralizar. De seguir em frente, por muito que doa, por muito que custe. Foi aí que me dei conta que, de facto, é por mim que facto faço isto. Pela superação, pelo sentir que sou capaz, que tenho pernas para semelhante. Foi como se tivesse renovado a energia que não tinha. Apeteceu-me parar, mas as pernas moviam-se sozinhas, numa passada que pareciam saber desde sempre. Podia dizer que foi espectacular, mas não chega. Foi mais.
Chegamos juntos ao ginásio, numa caminhada ligeira a contar os últimos metros, ainda a tentar respirar convenientemente, mas a falhar redondamente.
Por isso, hoje, quero escrever para não esquecer: eu sou capaz.
E isso basta.