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A Caracol

Um blogue pseudo-humoristico-sarcástico. #soquenão #ésóparvo

Um blogue pseudo-humoristico-sarcástico. #soquenão #ésóparvo

Experiências #16

Vazio, escuro e sem fim à vista. Mais uma mentira da humanidade: prometem-nos que a morte é branca, serena e luminosa, como uma sala que recebe o amanhecer todos os dias, a todas as horas. Ninguém fala do negro, da tormenta e da culpa. Talvez por ser mais fácil assumir que vamos para o nosso melhor local e não para o nosso pior buraco. Não é assim em vida? Porque haveria a morte de ser diferente?

Perdida no gigante corredor escuro, Carolina tentou, uma e outra vez encontrar o caminho de regresso. Não havia. Era como se estivesse a mergulhar no mar alto, atingindo aquele ponto em que já não se sabe se se nada em direcção à superfície, se pelo contrário, se vai afundando devagarinho. Caminhou mais um pouco no chão vazio de cor, suspensa no nada, até que um pequeno ponto luminoso, como um pequeno e tímido pirilampo, tremeluziu à frente. Correu na sua direcção, num sprint que rapidamente lhe tirou o fôlego. Outro pontinho minúsculo de luz juntou-se ao primeiro. Carolina lançou-se novamente para a frente numa corrida desenfreada. Não lhe parecera tão longe da primeira vez. Talvez no inferno as pessoas ganhassem mais acuidade visual, uma espécie de superpoder para atormentar, ainda mais, as almas em desespero.

Não sabia o que fizera para ter semelhante fado. Tentara sempre fazer o seu melhor, escolhendo a menos má das hipóteses. Não prejudicara ninguém, não atropelara ninguém para chegar ao topo. Todos os meses contribuíra para causas solidárias, umas ezes mais outras menos. Não se metera em vidas que não eram da sua conta. Onde errara? O que fizera para merecer este lugar? Se todas as suas escolhas foram feitas com consciência, se todas as noites conseguiu adormecer sem peso na alma, se sempre fora boa pessoa… Porque veio aqui parar?

Tomás.

Não, não podia ser. Fez tudo o que podia por ele. Aguentou o casamento até onde pôde, mesmo quando já não havia qualquer relação e ambos se odiavam: ela porque ele se recusava a seguir o tratamento, ele porque estava em crer que ela o manipulava. Terminou o casamento, porque já não suportava mais uma relação tão conflituosa e tão cheia de rancor. Ninguém a podia culpar por isso.

A não ser ela própria.

E, sendo completamente sincera consigo, havia uma pontinha de culpa a querer pular do lugar recôndito onde permanecia guardada? Não a culpa de querer uma mudança  segura numa vida sem norte. Não a culpa de ter agido em prol da sanidade mental dela e da filha. A culpa não fora de Carolina, a doença e consequente decadência Tomás, não eram culpa sua. 

Mas o depois talvez fosse. 

Quantas chamadas por dia recebia do ex-marido? 

Quantas atendia? 

A quantas mensagens respondeu? 

Quando fora a última vez que se dignara a falar com ele? 

Ele tinha-a magoado. Muito. Garantira que estava mudado, que as coisas estavam finalmente a encarreirar, que até tinha arranjado um emprego. Tomás dissera-lhe isso numa mensagem, depois de ter tentado uns quantos telefonemas em vão. Carolina nunca respondeu. Ou pelo menos, não a esse assunto em concreto, talvez lhe tenha enviado uma mensagem, uns dias mais tarde, informado o dia e a hora a que poderia estar com Maria. 

Era essa a culpa que sentia: de não lhe ter dado uma segunda oportunidade, de não ter acreditado que era possível mudar, de não estar lá para ele, para comemorar um emprego simples num supermercado ou para assistir ao seu esforço de retomar o fio à vida que deixara suspensa. Toda a gente merece uma segunda oportunidade, não era isso que apregoava aos sete ventos, nas suas reportagens? 

Determinada a esquecer a culpa por momentos, Carolina focou novamente os dois pontinhos de luz na escuridão que a circundava. Já não eram só dois pirilampos. Eram vários, encaixados entre si, formando um pequeno foco luminoso. Correu para a luz, sem perceber que não se movia do lugar. As pernas rolavam, uma atrás da outra, numa passada ofegante e desesperada. A escuridão parecia passar a alta velocidade, mas a pequena lanterna manteve-se sempre no mesmo lugar, sempre à mesma distância. 

Cansada, Carolina deixou-se cair no chão de nada, tentando conter as lágrimas que se formavam. 

Lá longe, na pequena lanterna, outros pontos de luz juntavam-se aos anteriores. Como um retrato que se iluminava pixel a pixel.

Ao cabo de uns minutos, já não havia uma lanterna, mas um retrato iluminado de um rosto pequeno e redondo. 

Sem o seu consentimento, as lágrimas rolaram cara abaixo e o peito abriu-se num grito mudo. 

Fitou o rosto da moldura, murmurando um sem número de desculpas, entre uma nova torrente de lágrimas. 

Correu novamente para ele. Novamente, não saiu do lugar. 

Lá longe, o rosto sorridente e alegre parecia fazer troça do seu esforço. 

Carolina percebeu então que o mais a amargurava, não era a culpa, n as ações, nem o que de pior tinha feito na vida. 

O que realmente lhe rasgava o peito de dor, era nunca mais conseguir alcançar aquele rosto, nunca mais o ver ao vivo, sentir a pele suava debaixo da sua mão. Ver o brilho no olhar quando ria de entusiasmo. Eram tudo prazeres que já não lhe estavam destinados. 

Como se a tivesse escutado, o rosto mudou de expressão para uma gargalhada muda. Era a personificação da felicidade em estado puro e tudo o que de melhor o mundo pode ter. 

Era Maria. A sua Maria. 

 

 

 

Experiências #15

10 julho 2010

Tomás fita melancolicamente a data gravada na aliança ao mesmo tempo que a acaricia suavemente. Nunca deixara de a usar, nem nunca tal lhe passara pela cabeça. Vai girando o anel dourado, já baço em algumas áreas, detendo-se a fixar o nome gravado no lado oposto à data: Carolina Holster.

Por um segundo, Tomás já não está sentado num banco de jardim, desfrutando da sua pausa da manhã: está no Alentejo, na Holster Village, num final de noite quente. O fotógrafo insistira para que saíssem da festa durante uns minutos a fim de os retratar sozinhos no amplo jardim, pelo que lhe fizeram a vontade acabando por demorar mais do que previram. De volta à festa, uma Carolina apressada puxava-o pela mão, numa corrida quase infantil. Que diabos! A festa não era deles? Não se podiam demorar um bocadinho mais? Tomás deixava-se arrastar pela esposa entusiasmada, enquanto a apreciava. Alguns caracóis mais rebeldes desprenderam-se do apanhado, roçando-lhe pelos ombros ou saltitando ao ritmo do seu passo ligeiro. O vestido de cetim branco deixa-lhe as costas desnudas, num V que tem tanto de encantador como de provocador, com o tecido da saia a ajustar-se perfeitamente às suas ancas, como se de uma segunda pele se tratasse, salientado as suas curvas e incitando à imaginação das pernas que se escondiam por baixo do tecido fino e ligeiramente travado. A mão livre puxava a saia do vestido para cima para dar mais liberdade à passada, expondo a pele perfeita e cálida dos tornozelos. Estava perfeita. Da tenda gigante chegavam os acordes de Chasing Cars, quando Tomás a puxou delicadamente para si, provocando um rodopio de caracóis ruivos e um riso infantil contagiante.

- Estás linda! – Declarou enquanto a abraçava pela cintura, acariciando a pele suave e exposta das suas costas.

- Estás a tornar-te lamechas, Tomás? – Gracejou Carolina ajeitando-lhe a gravata e puxando-o pela lapela do casaco.

Inspirou profundamente e quase que a conseguia sentir novamente, o calor do seu corpo no seu abraço, o seu cheiro floral e requintado, a maciez da sua pele. Forçou a mente a voltar à realidade, devolvendo-a à gaveta dos momentos felizes. Não teria novamente momentos daqueles ou pelo menos não tão cedo e não com Carolina. Definitivamente, não teria uma segunda oportunidade com ela. Ou teria? Conseguiria de alguma forma compensar o passado? Não o esquecendo para não voltar a cair no mesmo erro, mas compensando-o? Tornando o presente melhor, vivendo mais com a sua família a para ela? E se tentasse? Seria um longo caminho, sem dúvida, mas já fizera grande parte do percurso sozinho, reconstruindo-se e voltando aos poucos à vida normal. Porque não telefonar-lhe? Convida-la para um café ou para um pequeno passeio. Começar do zero, conhecendo-se novamente, sem pressas e sem as loucuras de anos idos.

Olhou de relance para o mostrador do relógio de pulso constando tinha quatro minutos para dar a pausa como terminada. Felizmente, a distância que o separava do supermercado era curta, somente a estrada que o separava do pequeno jardim urbano onde se encontrava. Caminhou até à passadeira aguardando o aval verde do semáforo. Um carro abrandou a marcha parando ao sinal vermelho. Dentro dele ecoava Chasing Cars e Tomás deu consigo a sorrir pela coincidência enquanto devolvia a aliança ao sítio onde pertencia. O peão iluminou-se de verde E Tomás caminhou confiante para o supermercado, com uma esperança que há muito não tinha e ignorando o calafria que lhe percorreu o corpo quando ouviu o grito agudo de uma ambulância apressada, segundos depois de ter atravessado a rua. 

Experiências #14

O trânsito lisboeta estava caótico naquele final de tarde. Nada de novo na cidade, mas para Carolina era o inferno. Estava retida há quase duas horas e odiava não conseguir desvencilhar- se dali. Não era o trânsito em si, mas o momento, o silêncio, a incapacidade de calar os pensamentos que sem ordem prévia lhe assombravam o espírito. Piorava o facto de não ter onde se concentrar: já tinha tentado a música, mas não surtiu o efeito desejado, o trabalho tinha terminado, não tinha deixado pendentes, Maria estaria com os pais e não tinha planos para aquela noite. Como em todas as outras, de resto. Há já muito tempo que não saía com ninguém. Namoriscou com o estagiário, todavia não havia nada nele que a preenchesse. Fora um divertimento, uma fuga a um divórcio atribulado e uma consequente quebra radical com o ex marido. Divertiu-se, teve uma ligeira pena do miúdo que usara a seu favor, contudo não lamentava profundamente. No meio do caos que era a sua vida naquele momento, ter alguém quem a desejasse eleva-lhe o ego dando-lhe a sensação de que ainda dominava alguma coisa na situação. 

Não dominava, claro, de contrário não precisaria de distrações e ilusões de poder. Sorriu perante a constatação. Era fácil raciocinar quando a distância temporal se interpunha entre situações. Foi vagueando por entre memórias e o seu pensamento terminou, invariavelmente, em Tomás. 

Tinha saudades do marido. Não do fantasmas do último ano, mas do marido que levara a apaixonar-se todos os dias mais um bocadinho. Que a fazia sentir-se especial, mesmo quando acordava de uma noitada e ainda com hálito a gin tónico. Recordava a forma metódica como organizava as tarefas, inclusive os seus pensamentos e ideias. Era simples conversar com Tomás e não raras vezes a lógica irrefutável e o seu pragamatismo levavam-na à loucura. Tinha agora consciência que muitas vezes se insuflara por nada, mesquinhices que não tinham o mínimo interesse. 

Instintivamente, como um hábito enraizado há muito tempo, brincou com a aliança que ainda mantinha no anelar fio. Sorriu ao recordar a viagem a Paris, apenas dois anos antes, e fez um esforço extra por manter a compostura. Poderia a vida sofrer semelhante volta? Como aconteceu? O que fez de errado? Porquê a ela? Porquê Tomás? Não sabia o quê, quando ou como, nunca se apercebera até ser alertada pelo seu espião de recurso. É sempre assim, nunca vemos o que está mesmo à nossa frente. Estamos permanentemente cegos pela azáfama do dia-a-dia e os detalhes são arrumados a um canto para pensar depois. E depois... Bem, o depois às vezes é tarde demais, dando lugar aos "ses" da vida. Rodou novamente a aliança no dedo enquanto balançava a sua quota parte de culpa na equação tentando,em vão, responder aos seus "ses". 

Suspirou resignada à frustação dos eternos enigmas ao mesmo tempo que o trânsito recomeçava, lentamente, a fluir. A vista da ponte do Tejo era soberba e o pôr do sol conferia uma tonalidade rosada às nuvens, lembrando o algodão doce dos arraiais de verão. 

Talvez por ir tão absorta nos enigmas que nunca teriam conclusão, Carolina não se apercebeu do som, nem do cheiro a borracha queimada. Não viu a guinada do carro da frente, esquisita e sem sentido dado que seguiam numa auto-estrada. Não reparou no ângulo esquisito dos faróis da viatura que seguia em sentido oposto, nem de como rapidamente perdia o controlo da direção. Quando o seu cérebro assimilou o que estava a acontecer já não havia tempo para reagir ou sequer tentar um milésimo de desvio. Pensou em tudo e em nada naquela fração de segundo. A seguir, tudo ficou escuro. 

 

 

Experiências #13

Maria estava uma crescida do alto dos seus seis anos. A sua vida mudara radicalmente nos últimos 10 meses, mas isso não a impedira de obter bons resultados no primeiro período escolar. Aprendia rapidamente e devorava a informação que a professora debitava na sala de aula. Preferia os lápis às bonecas de outrora e os conjuntos de loiça pequenina foram substituídos por livros com pequenas histórias de fácil leitura. Gostava de ler alto e com um público de bonecos bem alinhado e atento, não gostava que a interrompessem e era por isso que preferia um público inanimado a um público vivo – os adultos à vezes esquecem-se que para aprender também é preciso errar, passam a vida a corrigir pequenas falhas e estão sempre cheios de pressa: ou têm que fazer o jantar ou preparar alguma coisa que não pode esperar.

 

Nesses momentos tinha saudades do pai. Passava mais tempo fora de casa que dentro dela é certo, mas quando lá estava e lhe dedicava tempo não havia mais nada. Era sempre ela a comandar a brincadeira e o pai vestia a pele daquilo que lhe pedia. Se fosse público, escutava com atenção, sem interromper. Se fosse parte do espectáculo, encarnava a personagem com rigor. Chegou a ser modelo e cobaia da sua manicure desajeitada. Podiam ser 20 ou 30 minutos, mas naquele tempo só eles existiam e isso valia por todas as outras horas.

 

Tinha saudades do pai.

 

A mãe e os avós garantiam-lhe que ele haveria de recuperar, mas Maria não percebia do quê. O pai nunca lhe parecera doente. Se calhar era por causa das discussões com a mãe, a avó dizia que ralhar dava-lhe cabo dos nervos e na volta o pai ficara com os nervos avariados. Desejava que melhorasse depressa, queria brincar de novo com ele e não apenas ter uma conversa de circunstância na hora da visita estipulada. Queria mostrar-lhe que já sabia ler e que o fazia cada vez mais rápido e melhor. Queria desenhar e pintar com ele e brincar como antes.

 

Concentrada e compenetrada em melhorar para dar o seu melhor quando estivessem de novo juntos, Maria retomou a leitura para o público mudo, ansiando o dia em que o pai faria de novo parte dele.

 

Texto original da minha autoria

 

* * * 

 

 

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Experiências #12

Experiências #11

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Experiências #2

Experiências #1

 

 

Experiências #12

- Bom dia Sr. Ventura. Já ligou a máquina do café?

- Olá bom dia Carolina. Já sim. Pode ir tomar o seu cafézinho.

- Obrigado.

Carolina dirige-se à copa, tira um café e aguarda pacientemente que o estagiário lhe traga o o resumo das informações que lhe pediu.

- Então, que novidades tens para mim?

- Carolina, fico muito feliz por lhe dizer que não, o seu marido não a anda a trair. Esta semana, não fez uma única chamada que não fosse de trabalho ou para si. Nem para os pais dele telefonou. O telemóvel dele nunca esteve numa zona que não fosse a vossa casa ou o escritório. O histórico de internet não revela nenhum site esquisito e nem as pesquisas no Google por mulheres foram relevantes. Pesquisou oitenta e três vezes pela advogada do processo do clube de futebol e cento e vinte e nove vezes pela procuradora do Ministério Público do processo da lavagem de dinheiro.

- De certeza? Ele não me está a enganar?

- Carolina, andamos nisto há dois meses. Todos os dias passo horas intermináveis ao frio apenas para ver o seu marido a sair do escritório sozinho com um ar alheado, entrar no carro, conduzir até sua casa, depois vou para casa, faço o que me pediu, espio-o, acedo inclusivamente à webcam para o ver a trabalhar como um condenado. Sabia que, cada vez que ele pega numa caneta para tirar um apontamento, ele pega nas outras oito canetas que tem na secretária e arruma-as, uma por uma? São nove canetas. Todas de cores diferentes. E ele arruma-as todas da mesma maneira, sempre na mesma ordem. Sempre. E eu já sei a ordem das canetas todas. Azul, preta, vermelha, amarela, verde, laranja, rosa, castanha e corrector. Sempre na mesma ordem. Sempre com o bico virado para a impressora. Sabia que sempre que o seu marido liga o computador, ele abre a gaveta da direita, retira um bloco A4, escreve a data no campo superior direito com a caneta preta, pega nas nove canetas, arruma-as uma por uma, insere a password no computador, que é a data do vosso casamento e o nome da vossa filha em letras minuscúlas, entra no google, escreve o nome de alguém, tira uma nota com a caneta azul, pega nas nove canetas, arruma-as uma por uma…

- Já percebi, já percebi. O meu marido tem manias. Portanto, estás a garantir-me que o ele não anda a trair-me nem anda em chats nem em Tinders nem o raio que o parta.

- Nada Carolina. Nem uma aplicação, nem um Facebook, nem um Instagram, nem um Twitter. Na-da.

- Obrigado Sérgio. Muito obrigado. Não me esqueci do nosso acordo. Amanhã, supostamente, saio às três da tarde. Vou ficar a fazer horas extra no gabinete do Director de Programação, que vai estar toda a tarde em reuião com a Direcção de Conteúdos e a Direcção de Publicidade. A partir das três, podes ligar-me para confirmar se já lá estou para te mostrar o que é que eu faço no programa da Judite. Agora tenho de ir preparar o programa da manhã.

Carolina dirige-se à secretária e liga para Sofia, para mais uma vez desabafar que está enganada, mas a sua amiga, desde que se enrolou com o jogador de futebol, nunca mais lhe atendeu as chamadas durante o horário de expediente. Em desespero, faz uma coisa que não lhe é habitual. Liga para o seu marido. Ao fim de dois toques, uma voz entre o surpreendida e o assustada atende o telefone.

- Estou? Carolina? Está tudo bem? Algum problema com a Maria?

- Olá Tomás. Está tudo bem com a Maria, sim. Não te preocupes.

- Estás a ligar-me. Que se passa?

- Preciso de falar contigo.

- Isso é óbvio, para me estares a ligar durante o dia, em horário de trabalho. Tenho uma reunião importante com um cliente novo daqui a cinco minutos. Mas posso adiar um bocadinho, por ti. Que se passa?

- Não quero falar por telefone. Podemos almoçar hoje?

- Almoçar? Mas não estás a trabalhar na hora do almoço?

- Sim, mas saio mais cedo, vou ter contigo e vamos àquele restaurante japonês no Campo Pequeno. Às duas? Por favor?

- Er… Às duas? Pode ser, sim. Eu falo com o Paiva e almoço contigo. Deixa-me só bloquear a agenda, para a Milene não marcar nada. Uma hora chega? Duas? Mais que isso não consigo.

- Duas. Obrigada Tomás. Desculpa estar a ocupar tanto tempo num dia de trabalho.

- Carolina, estás a gozar certo? Tu és a minha mulher. Para ti arranjo sempre tempo.

- Obrigado. Amo-te!

- Eu também te amo, leoazinha do meu coração. Até logo, às duas.

Carolina desliga o telefone e tenta recordar-se da última vez que tinha, num dia de semana, falado tanto tempo seguido com o marido. E não se recorda. Com lágrimas nos olhos, levanta-se, vai à casa de banho e senta-se numa cabine a respirar fundo, a tentar não esborratar a maquilhagem com as lágrimas que teimosamente afloravam aos seus olhos verdes. Quem estaria mais maluco? Ele? Ou ela?

 

* * *

Texto original de Mário Pereira

 

 

Experiências #11

Lisboa ainda dormia quando Tomás saiu de casa. Há muito que se habituara a esta rotina de começar o dia muito antes dos comuns mortais.

Não fora isto que idealizara para si, para a sua vida, mas neste momento agradecia todos os dias o que conseguira conquistar nos últimos quatro meses. Arranjara um emprego como repositor num supermercado local, o tipo de trabalho que qualquer pessoa é capaz de fazer, simples, rotineiro e com poucas ou nenhumas habilitações. Aprendera a fazê-lo com gosto, era um homem metódico, rápido e eficiente. Falava pouco e regra geral, o trabalho servia como escape às memórias que lhe assombravam à mente sem autorização prévia. Enquanto repunha os produtos nas prateleiras, não pensava no resto e isso era parte importante da sua terapia.

Há meio ano caíra desamparado e batera bem no fundo do poço. Perdera o emprego, ninguém empregava alguém com distúrbios psiquiátricos que, para além de recusar ajuda médica, ainda emborcava uns whiskys pela noite fora. Não raras vezes apresentou-se no escritório perto da hora de almoço exactamente com a mesma roupa do dia anterior, deixando um odor pestilento e nauseabundo atrás de si. Numa dessas manhãs, o chefe apresentou-lhe um ultimato: ou resolvia o problema ou era demitido no prazo de uma semana. Saiu no próprio dia, dono do seu nariz, senhor da sua razão, por semelhante ultraje à sua pessoa. Não tinha nada para resolver, estava apenas em baixo dada a frágil situação familiar em que se encontrava. Como poderia alguém ser tão insensível a isso? Sempre julgara o chefe como um amigo e ficou verdadeiramente magoado naquele dia. Agora, com a devida distância temporal, questionava-se como o tinham suportado tanto tempo. Fora um advogado brilhante, ganhara inúmeros casos em que o tamanho do imbróglio era descomunal. A sala de audiências foi o seu palco e Tomás bailou nela o melhor que soube, até que caíu na espiral vertiginosa que o levou à ruína.

A par do desemprego, seguiu-se o afastamento dos amigos. Uns mais tarde que outros todos deixaram de lhe ligar, de perguntar, de se importar. Não os julgava, faria exactamente o mesmo. Não há cego pior que aquele que não quer ver e Tomás tornou-se permanentemente cego.

Até ao dia em que a filha não o reconheceu.

Sentia saudades da pequena, de a ter aninhada no colo, do cheiro do seu cabelo, da sua vozinha fininha e da excitação frenética com que o recebia quando chegava à casa. Decidiu passar pelo colégio. Não se aproximaria muito, já que Carolina fora peremptória na última discussão sobre o assunto: não se aproximaria da miúda sem o seu consentimento e sem que ela ou os pais dela estivessem presentes. Quando chegou ao colégio, deparou-se com os miúdos a saírem desordenadamente de um autocarro. Tinham ido a uma visita de estudo e vinham excitadíssimos, correndo desenfreadamente, apesar dos sucessivos avisos das educadoras. Foi mais forte que ele. Aproximou-se devagar, simulando a casualidade de uma caminhada, fazendo um pequeno desvio para que o seu percurso se cruzasse com o da menina de cabelos ruivos esvoaçantes, tal como a sua mãe.

- Olá! Como estás? – perguntou agachando-se para ficarem ao mesmo nível.

Uns pequenos olhos castanhos, profundos e escuros, pousaram nele com perplexidade.

- Olá Maria! Estás tão bonita… Não me dizes “olá”? – ergueu a mão para lhe afagar o cabelo, mas logo a deixou descair quando a menina se retraiu.

Tomás viu o medo espelhado nos olhos dela, mas nada o preparava para o seguinte:

- Desculpe, mas tenho de ir embora. A minha mamã diz que é perigoso falar com estranhos.

Numa pequena corrida, Maria colocou-se entre o grupo de crianças que entrava desordenadamente para o colégio. Uma das professoras deitou-lhe um olhar algo desdenhoso, num misto de receio com piedade.

Sentiu o nó na garganta e tentou engolir as lágrimas que lhe bailavam nos olhos, sem qualquer sucesso. Ergueu-se, lutando contra a vontade de ficar ali deitado, chorando no chão de alcatrão. Quando se preparava para prosseguir a marcha, deu com um pequeno papel amarfanhado no fundo do bolso das calças. Rabiscado por Carolina o post it amarelo continha o dia e a hora da consulta psiquiátrica com o dr. Henrique, mas mais importante e onde Tomás focou longamente a atenção: o telefone de contacto do médico.

 

Texto original da minha autoria. 

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Experiências #10

- Olá boa noite

- C… C… Carolina! Olá! Boa noite, por aqui?

- Sim, vim cá com uma amiga, mas não sei dela e não tenho com quem falar. Posso sentar-me?

- Sim… Acho que sim… Quer dizer, claro que sim, se acha que… Quer dizer, claro, quer ficar aqui no sofá, que é mais confortável?

- Estou bem, obrigado. Não precisa de ficar nervoso. Já percebi que é uma pessoa tímida, mas eu não mordo.

- É que… fui apanhado desprevenido, não esperava que viesse falar comigo…

- Porquê?

- Porque a Carolina não me conhece, não somos amigos…

- Vamos tratar disso então. Fala-me de ti.

- Eu? Então… Er… O que quer saber?

- O teu nome, para começar.

- Sérgio. O meu nome é Sérgio Ventura.

- Boa! Olá Sérgio. Carolina Carvalho. O trabalho como estagiário no Canal é o teu primeiro?

- Não. Mas é o primeiro na área. Sou licenciado em Audiovisuais e Multimédia, mas até agora só arranjei trabalho em call centers, como caixa de supermercado e em cafés. Nem na FNAC.

- Há quanto tempo estás no Canal?

- Três semanas.

- E o que queres fazer? Quais são as tuas ambições para este emprego?

- Tenho um contrato de seis meses. O que eu queria mesmo era, daqui a uns tempos, estar a fazer o mesmo que a Carolina com o programa da Judite. É exactamente esse o meu objectivo a curto prazo.

- E se eu te ajudar a chegar lá?

- C… Como? Como assim?

- Se eu te ensinar, pouco e pouco, a coordenar o programa da Judite? E um dia mais tarde, se abrir alguma vaga para esse programa ou para outro, já tens alguma experiência, não tens de aprender tudo do zero.

- Uau! Mas isso era óptimo. Claro que sim, oh meu Deus! O que é que eu tenho de fazer para isso acontecer?

- Podes começar por me dizer o que estás a beber para bebermos mais uma rodada

- Não, Carolina. Peço desculpa, mas eu é que faço questão de lhe pagar uma bebida. O que quer beber?

- Um whisky sem gelo e uma água com gás para acompanhar.

- Muito bem. Já venho. Muito obrigado Carolina, um dia que precise de algo, seja o que for, só se eu não puder é que não a ajudo.

Sérgio levanta-se, vai buscar as bebidas e passado poucos minutos está de volta.

- Ainda bem que disseste isso… Por acaso há algo que podes fazer por mim.

- Diga, Carolina.

- Preciso que sigas o meu marido.

- O… O… O quê?

- Preciso que sigas o meu marido. Ele é advogado e todos os dias chega  a casa quando a miúda já está a dormir e a maioria das vezes fica acordado a noite toda. Quero só ter a certeza de que ele não anda a trair-me. Assim, preciso que me confirmes isso. Achas que consegues?

- Sim, claro que consigo. É muito fácil. Hoje em dia já há aplicações no telemóvel para fazermos isso. Quer que lhe ensine?

- Não, não quero ser eu a fazê-lo. Não quero que ele pense que eu estou a desconfiar dele sem motivos. Se não quiseres, eu percebo. E a minha proposta mantém-se de pé. Eu continuo a ajudar-te. E temos de arranjar outra forma de me compensares…

- Não é preciso. Eu faço isso. Só preciso de algumas informações sobre ele.

- Tudo o que precisares. Sou a pessoa certa a quem pedir.

Então, o que eu vou precisar é…

 

Texto original de Mário Pereira

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Experiências #1

Experiências #9

Deambulava pela rua, perdido em pensamentos, quando a viu. Havia passado um ano que saíra de casa e desde então nunca mais a vira. Visitava regularmente a filha, Maria, mas sempre em casa dos avós maternos e com aviso prévio de Carolina, com a data e hora a que poderia aparecer. Estava-lhe grato por isso, podia ter simplesmente alegado que não era uma boa influência para a menina, que era um louco que se recusava a aceitar ajuda médica, podia simplesmente pegar na miúda e decidir que ele nunca mais a via. Não fizera isso, nunca.

Fora difícil nos primeiros meses, não conseguiam sequer falar ao telefone sem descambarem em discussão. Essa fase durou apenas uma semana até Carolina nunca mais lhe atender uma chamada, limitando-se a enviar uma mensagem informativa semanas mais tarde: " A Maria vai passar o dia em casa dos meus pais, amanhã. Caso a queiras ver, podes aparecer das 15 às 17. " Eram sempre assim, curtas e distantes. Deu consigo diversas vezes a tentar ler nas entrelinhas, mas nunca havia, era sempre o mesmo texto, como se se limitasse a fazer copy-paste da mesma mensagem, uma e outra vez.

Há meses que não a via e agora, de repente, ali estava ela, sentada numa esplanada, acompanhada pelo seu chefe, Luís, beberricando um gin tónico elaborado e desfrutando de um final de tarde solarengo. Conversavam entre si, naquela cumplicidade que sempre tiveram e que só é possível quando há um determinado grau de intimidade. Tomás não conseguia perceber o teor da conversa, estava demasiado longe, mas nem tampouco isso lhe interessava. Naquele momento, deu-se ao prazer de a observar demoradamente, como o riso fazia com que os caracóis indomináveis do seu cabelo saltitassem num frenesim. Como o vestido preto, simples lhe realçava a brancura da tez e acentuava as suas já definidas curvas. Reparou num colar, que não o reconheceu e deduziu ser novo. um fio simples, dourado suficientemente comprido para que o pendente que sustinha pousar delicadamente abaixo da linha do decote. Se inspirasse fundo o suficiente, tinha a certeza que lhe conseguia sentir o cheiro perfumado. Ou talvez fosse só a sua memória a funcionar de forma demasiado realista.

O buzinar de um carro apressado, trouxe-o de volta à realidade, estava parado há demasiado tempo, enquanto a observava e rapidamente deixou de passar despercebido entre quem passava, para se tornar num tipo esquisito e com mau aspecto a engendrar alguma façanha. Olhou para a mesa da esplanada uma última vez, saboreando a luminosidade que o sol do final de dia lhe dava ao rosto, salientando ainda mais as suas pequenas sardas, num incrível jogo de constrastes. Inspirou profundamente, tentando descortinar o cheiro do seu perfume por entre o ar poluído de uma Lisboa em azafáma. Mecanicamente, virou costas àquela mesa e voltou à sua vida.

Experiências #8

6:30 da manhã

Carolina liga a água para o seu duche matinal. Nas últimas três semanas, dormiu sozinha pelo menos três vezes por semana. Tomás prepara um julgamento importante e passa as noites em frente ao computador, a verificar detalhes sobre a defesa que tem montada. Uma vez e outra, relê os seus apontamentos e os seus processos. E ela prepara o jantar, mantém a casa habitável, preocupa-se com Maria, faz as compras online e recebe-as ao fim da tarde. O seu vibrador cor de rosa já não a satisfaz o suficiente. Precisa de toque. Despe-se e entra no duche. A água quente acalma-lhe os ímpetos e afasta-lhe os pensamentos pecaminosos. Toma um duche ligeiramente mais longo que o habitual enquanto revê o seu dia. Reunião às 10 da manhã com Luís e a direcção do canal. Às 11, o programa da Judite como habitualmente até ao início da tarde. Almoço na cantina do canal. A tarde ainda está liberta.

Vai à gaveta da lingerie especial. Hoje precisa de se sentir feminina e confiante. Escolhe um conjunto que comprou especalmente para o aniversário de casamento. Entra no closet e analisa as suas opções. Discreta, de cinzento? Não, hoje não. Arrojada, de preto e encarnado? Não, levou para a última reunião. Sexymas profissional, com a blusa laranja e a saia travada. É isso. O decote não é escandaloso, mas permite sonhar. Um colar que chame a atenção para aquela zona. O pendente comprido. Isso mesmo. E agora um casaco… O blazer sem botões. E os sapatos altos pretos. Perfeito.

Desce à cozinha, toma um pequeno almoço leve, apanha o elevador para a cave, entra no carro e conduz calmamente pelas ruas ainda semi-desertas. Às 7:30 estaciona o carro no lugar habitual e percorre o caminho até à sua secretária. Liga o computador e vai à copa preparar um café. Lá, Liga a máquina. Ser a primeira a chegar ao escritório tem vantagens, a copa está limpa só para mim, pensa distraídamente. Nesse momento, entra o estagiário, que a cumprimenta com um sorriso envergonhado. Responde educadamente enquanto a bebida fumegante sai da máquina. Pelo canto do olho, repara que o estagiário olha furtivamente para ela e sorri interiormente. Sabe-lhe bem saber o efeito que tem nos homens. E o puto não é assim tão feio, pensa para com os seus botões. Baixa-se para colocar o copo de papel no lixo e repara que ele lhe olha pelo decote. Demora-se um microssegundo a mais e afasta-se com um sorriso na cara.

A reunião é um pequeno sucesso, pois consegue argumentar com clareza e no fim ouve elogios à sua capacidade de trabalho e apresentação. Luís não tirou os olhos do seu peito, o que significa que a roupa foi adequadamente escolhida. Ao almoço, revê o programa da Judite e encontra um pequeno ponto a corrigir no dia seguinte. Propõe a Judite a alteração ao início da tarde na sala de visionamento e recebe mais um elogio à proactividade. À saída, antes das quatro horas, cruza-se com o estagiário e oferece-lhe um sorriso e um “até amanhã à mesma hora” que provocando um rubor intenso na cara. No ginásio, percorre o circuito de cardio sem se preocupar com a habitual trupe de gorilas a mirar-lhe o rabo enquanto corre na passadeira e faz elíptica. Chega a casa ainda antes das 18h com a sua filha, recebe as compras do Continente, veste roupa confortável, prepara um jantar leve para as duas e senta-se no sofá a brincar com a filha.

Às nove da noite chega Tomás, distante como sempre. Dá-lhe um beijo rápido nos lábios, informa que já jantou e recolhe ao seu escritório. Carolina deita Maria, pega no telefone e liga para Sofia. A amiga atende meio chorosa, tinha tido uma discussão com  o Manel e ele tinha ido para casa dele. Volta a vestir-se e vai ter a casa de Sofia. Decidem ir a um bar para espairecer.

No bar, encontra um grupo de colegas de profissão e troca duas larachas com a pivô da noite, enquanto Sofia conversa animadamente com o ex-jogador de futebol que faz a secção desportiva. Cerca de uma hora depois, nem Sofia nem o futebolista estão no bar e ela fica sem saber muito bem o que fazer. Quando se dirige para a saída vê o estagiário numa mesa de canto agarrado ao telemóvel.

 

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Texto da autoria de Mário Pereira 

 

 

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Experiências #7

Experiências #6

Experiências #5

Experiências #4

Experiências #3

Experiências #2

Experiências #1

Experiências #7

Subitamente, o gabinete pareceu-lhe demasiado pequeno. Sentiu-se claustrofóbico, agoniado e o chão parecia movimentar-se debaixo dos pés. O diagnóstico era claro: estava louco. Precisaria de acompanhamento e ficaria dependente das drogas psiquiátricas para o resto da vida. Nunca mais seria a mesma pessoa, perderia o emprego, a mulher e... Maria! Céus, como haveriam de dizer à menina que o seu pai estava mentalmente doente? Talvez Carolina até o proibisse de a ver, para segurança da pequena. Ninguém queria malucos por perto.

A voz grave do Dr Henrique, trouxe-o de volta à realidade. Sem se dar conta, já hiperventilava e transpirava em bica.

- Tomás, isto não é um drama. É perfeitamente possível viver pacífica e tranquilamente com esta condição, mantendo o acompanhamento psicológico com o dr. Gonçalves, fazendo avaliações comigo, regularmente, e algumas sessões de psicoterapia também o vão ajudar a controlar melhor esses impulsos.

- Mas quais impulsos?! Eu não faço nada de anormal, não ando por aí tapado só com uma gabardine a fazer rondas a escolas! - a voz saía-lhe mais fraca que o habitual. transtornada por aquilo que ouvira.

- A primeira coisa que fez, quando aqui chegou, foi alinhar o pisa papéis com o porta canetas, colocando a branca, na mesma posição das restantes, enquanto as contava para si. E mesmo não me falando sobre isso, quase aposto que contou o número de quadros que tenho na parede atrás de mim e que o seu desalinho propositado o incomoda.

Tomás olhou para ele, atónito. Reparara de, facto, nas dezassete molduras que enfeitavam a parede. Cinco grandes exibindo diplomas vários, sete médias com desenhos infantis, certamente deixados por crianças que frequentavam o gabinete e cinco com fotografias de pessoas felizes e sorridentes. Estavam colocadas ao acaso, sem qualquer tipo de ordem e algumas estavam inclusivamente pendidas, como se fossem cair a qualquer instante. Várias vezes refreou o desejo de as colocar alinhadas e direitas, como deviam estar.

O médico observou a interrogação que os olhos do paciente espelhavam. Desde que entrara, sorridente e confiante, haviam passado pouco mais de 10 minutos, Tomás impacientou-se com a posição do pisa-papéis E com um gesto descontraído, como se afastasse um pouco de pó da secretária, alinhou-o rapidamente com a porta canetas. Pedira-lhe para ver a branca, a única cujo bico apontava para o tecto e, após um milésimo de segundo a avaliar o objecto, colocou-a de novo no lugar, tendo o cuidado de colocar o bico em direcção ao chão e exactamente a meio das restantes. Não raras vezes, esfregara as mãos com nervosismo, enquanto fitava de soslaio a parede de molduras que adornavam o consultório.

O transtorno obsessivo-compulsivo era relativamente comum embora o mais frequente fossem impulsos ligados à limpeza e higienização de superfície ou até mesmo em questões de segurança, como o verificar diversas vezes o desligar de uma tomada ou uma porta bem trancada, também era usual existirem estes extremos de busca da perfeição aparente.

Prescreveu a dosagem adequada de clomipramina numa das suas receitas que entregou a Tomás. Recomendou-lhe nova consulta dentro de 15 dias, mas sabia que o mais certo era não ele não comparecer.

 

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