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A Caracol

Um blogue pseudo-humoristico-sarcástico. #soquenão #ésóparvo

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Experiências #11

Lisboa ainda dormia quando Tomás saiu de casa. Há muito que se habituara a esta rotina de começar o dia muito antes dos comuns mortais.

Não fora isto que idealizara para si, para a sua vida, mas neste momento agradecia todos os dias o que conseguira conquistar nos últimos quatro meses. Arranjara um emprego como repositor num supermercado local, o tipo de trabalho que qualquer pessoa é capaz de fazer, simples, rotineiro e com poucas ou nenhumas habilitações. Aprendera a fazê-lo com gosto, era um homem metódico, rápido e eficiente. Falava pouco e regra geral, o trabalho servia como escape às memórias que lhe assombravam à mente sem autorização prévia. Enquanto repunha os produtos nas prateleiras, não pensava no resto e isso era parte importante da sua terapia.

Há meio ano caíra desamparado e batera bem no fundo do poço. Perdera o emprego, ninguém empregava alguém com distúrbios psiquiátricos que, para além de recusar ajuda médica, ainda emborcava uns whiskys pela noite fora. Não raras vezes apresentou-se no escritório perto da hora de almoço exactamente com a mesma roupa do dia anterior, deixando um odor pestilento e nauseabundo atrás de si. Numa dessas manhãs, o chefe apresentou-lhe um ultimato: ou resolvia o problema ou era demitido no prazo de uma semana. Saiu no próprio dia, dono do seu nariz, senhor da sua razão, por semelhante ultraje à sua pessoa. Não tinha nada para resolver, estava apenas em baixo dada a frágil situação familiar em que se encontrava. Como poderia alguém ser tão insensível a isso? Sempre julgara o chefe como um amigo e ficou verdadeiramente magoado naquele dia. Agora, com a devida distância temporal, questionava-se como o tinham suportado tanto tempo. Fora um advogado brilhante, ganhara inúmeros casos em que o tamanho do imbróglio era descomunal. A sala de audiências foi o seu palco e Tomás bailou nela o melhor que soube, até que caíu na espiral vertiginosa que o levou à ruína.

A par do desemprego, seguiu-se o afastamento dos amigos. Uns mais tarde que outros todos deixaram de lhe ligar, de perguntar, de se importar. Não os julgava, faria exactamente o mesmo. Não há cego pior que aquele que não quer ver e Tomás tornou-se permanentemente cego.

Até ao dia em que a filha não o reconheceu.

Sentia saudades da pequena, de a ter aninhada no colo, do cheiro do seu cabelo, da sua vozinha fininha e da excitação frenética com que o recebia quando chegava à casa. Decidiu passar pelo colégio. Não se aproximaria muito, já que Carolina fora peremptória na última discussão sobre o assunto: não se aproximaria da miúda sem o seu consentimento e sem que ela ou os pais dela estivessem presentes. Quando chegou ao colégio, deparou-se com os miúdos a saírem desordenadamente de um autocarro. Tinham ido a uma visita de estudo e vinham excitadíssimos, correndo desenfreadamente, apesar dos sucessivos avisos das educadoras. Foi mais forte que ele. Aproximou-se devagar, simulando a casualidade de uma caminhada, fazendo um pequeno desvio para que o seu percurso se cruzasse com o da menina de cabelos ruivos esvoaçantes, tal como a sua mãe.

- Olá! Como estás? – perguntou agachando-se para ficarem ao mesmo nível.

Uns pequenos olhos castanhos, profundos e escuros, pousaram nele com perplexidade.

- Olá Maria! Estás tão bonita… Não me dizes “olá”? – ergueu a mão para lhe afagar o cabelo, mas logo a deixou descair quando a menina se retraiu.

Tomás viu o medo espelhado nos olhos dela, mas nada o preparava para o seguinte:

- Desculpe, mas tenho de ir embora. A minha mamã diz que é perigoso falar com estranhos.

Numa pequena corrida, Maria colocou-se entre o grupo de crianças que entrava desordenadamente para o colégio. Uma das professoras deitou-lhe um olhar algo desdenhoso, num misto de receio com piedade.

Sentiu o nó na garganta e tentou engolir as lágrimas que lhe bailavam nos olhos, sem qualquer sucesso. Ergueu-se, lutando contra a vontade de ficar ali deitado, chorando no chão de alcatrão. Quando se preparava para prosseguir a marcha, deu com um pequeno papel amarfanhado no fundo do bolso das calças. Rabiscado por Carolina o post it amarelo continha o dia e a hora da consulta psiquiátrica com o dr. Henrique, mas mais importante e onde Tomás focou longamente a atenção: o telefone de contacto do médico.

 

Texto original da minha autoria. 

* * * 

 

Capítulos anteriores:

Experiências #10

Experiências #9

Experiências #8

Experiências #7

Experiências #6

Experiências #5

Experiências #4

Experiências #3

Experiências #2

Experiências #1

 

 

Experiências #6

- Como é que eu lido com aquele sacana?

- Amiga, sei lá, tu é que o conheces, não eu!

- Será que eu é o conheço? Começo a duvidar…

- Não sejas parva, Carolina. Ainda me lembro quando há me disseste que ias fisgar o advogado bonitão do Presidente do… Qual era o clube mesmo?

- Não me lembro, não é importante. Onde é que queres chegar?

- Onde eu quero chegar? Tu é que decidiste que o ias conquistar, tu é que lhe deste a nega durante meses, enquanto ele praticamente beijava o chão que pisavas, tu é que decidiste como, quando e onde se iam encontrar, tu é que decidiste se iam chegar a vias de facto na primeira noite ou não… Tu é que decidiste tudo na vossa relação. Tu é que és o motor lá de casa. Sem ti a miúda andava vestida com roupa da Primark e ele andava de Citröen Saxo azul cueca, fatos da Giovanni Galli e gravatas da Feira de Carcavelos. Se tu saíres da equação, ele pura e simplesmente torna-se incapaz de fazer algo que não seja relacionado com o Direito. E mesmo isso duvido. Ele venera-te, amiga. E aposto que se lhe pedires o divórcio, ele fica tão de rastos que nem discute e te dá tudo o que quiseres. Só tens que andar para a frente com o pedido…

- Olha querida, tenho que ir, isto de ser a primeira pessoa a quem o Director de Comunicação quer dar trabalho é muito bom, mas tem esta desvantagens. Falamos depois tá? Beijinho e obrigado.

- Beijinho, leoa. Gosto muito de ti, sabias?

- Sei. E eu de ti.

Carolina desliga o telefone, compõe o sofisticado tailleur, confirma que o decote está decente e levanta-se em direcção ao gabinete de Luís. Durante o percurso, pensa na conversa que acabara de ter com Sofia. Já há algum tempo que se questionava sobre o seu casamento. Por um lado, agradava-lhe a segurança de ter alguém quando chegava a casa, cansada de um dia de trabalho. Por outro, agradava-lhe a ideia de recomeçar de novo, escolher novamente um homem, transformá-lo num animal na área em que ele estivesse e claro, pelo caminho divertir-se um pouco com ele. Entra no gabinete de Luís e sorri profissionalmente. Luís levanta o olhar do ecrã do portátil e mira-a de cima abaixo, parando mais tempo do que o que devia no seu peito. Luís era um bom homem, felizmente casado e sem escândalos que se lhe conhecessem, mas tinha uma mente demasiado aberta no que à sexualidade dizia respeito. Não tinha qualquer pejo em mirá-la com ar guloso, de comentar quando ela trazia um conjunto mais arrojado ou de fazer um piropo ao seu rabo ou ao seu peito nas alturas mais desproporcionadas. Inclusivamente, tinha na sua posse registos de conversas privadas no chat da estação em que a linguagem dele resvalou, sem qualquer pejo, para conversas sexuais explícitas. Numa delas, perguntava abertamente quantas vezes por semana mantinha relações com Tomás e quantos orgasmos costumava ter em média. Perguntas às quais Carolina não respondeu directamente mas que a fizeram sorrir, na altura. Sabia que Luís era o seu chefe, mas acima de tudo era um amigo de longa data desde os tempos da faculdade, colega de carteira do irmão mais velho no mesmo colégio em que também ela estudou, o seu padrinho de casamento. Além disso, também foi o homem com quem manteve relações sexuais ocasionais em noites de maior solidão e menor predisposição para a utilização do vibrador. Era a ele a quem telefonava a pedir companhia antes de conhecer Tomás. A relação que mantinha com ele era extremamente profissional dentro do escritório perante os colegas mas, a dois dentro do gabinete ou na rua, era o outro homem perto de quem se sentia completamente à vontade. Era aquele a quem era capaz de dizer as maiores barbaridades e manter as conversas que não tinha em casa.

- Bom dia. Desculpa se demorei Luís, estava a conversar com a Sofia e já sabes como ela é, primeiro que se cale é um sarilho.

- Não tem mal, Carolina. Não tem mal. Bom dia. A Sofia, continua junta com aquele cromo do Manel?

- Sim, estão a pensar em ter filhos em breve.

- Que pena, um corpo daqueles não merece uma gravidez. Vai estragar aquelas mamas todas.

- Desculpa Luís, hoje estou com imenso trabalho por causa da reportagem da empresa da TV Cabo. Chamaste-me para me dizer algo importante?

- Claro claro, desculpa. Temos que marcar uma reunião com a chefia do Canal. Vai haver uma reestruturação e estou a apostar em ti para seres a nova face do telejornal do almoço. Mas para isso, tens de ser devidamente apresentada e vais ter que mostrar todos os teus dotes, que eles olham para ti de lado por eu ser amigo do teu irmão e teu padrinho de casamento. Quando é que te dá jeito para a semana?

- A sério? Eu? Obrigado Luís. Muito obrigado pela confiança. Escolhe tu o dia e a hora, desde que seja antes das onze ou depois da uma da tarde, porque esse é o intervalo em que tou a coordenar o programa da Judite, como sabes.

- De nada. Sabes que gosto muito da tua maneira de trabalhar e acho que tens futuro no canal. E sei que há outros canais de olho em ti para o mesmo espaço. Assim adianto-me a eles. E tu ficas aqui ao pé de mim, que comigo é que tu tás bem. Vou então tratar de tudo e depois digo-te OK?

- OK. Até logo.

Carolina vira costas, sai do gabinete de Luís e entra na casa de banho. Por um lado, apetece-lhe dar pulos de alegria pela promoção iminente. Por outro, apetece-lhe chorar porque vai ter menos tempo para lidar com os seus problemas familiares. Entra num cubículo e senta-se a pensar… “E agora, que raio vou fazer à minha vida?”

 

* * *

Texto da autoria de Mário Pereira.

 

Capítulos anteriores:

Experiências #5

Experiências #4

Experiências #3

Experiências #2

Experiências #1

 

Experiências #5

 

Quando é que a sua vida tinha ficado assim? Quando é que perdera o controlo da situação? Como é que se deixara afundar tanto? Questões que assomavam uma e outra vez à cabeça de Tomás, naquela manhã de segunda feira. Limitava-se a observar as pás da ventoinha que pairava no tecto, fazendo um esforço por não contar número de elos da corrente que o sustinha.

Não sabia quando começara. Talvez quando se empenhava demasiado no trabalho, verificando uma e outra vez todo o seu trabalho argumentativo, para que não existissem brechas que pusessem em causa o seu sucesso na sala de audiências. Ou quando saía em família e dava consigo a tentar descortinar o que pairava nas mentes dos que consigo se cruzavam, buscando olhares de interesse, fazendo leituras corporais que não existiam e divagando no obscuro da mente humana. Talvez quando se entretinha a arrumar a secretária numa tentativa de manter a ordem visível, por oposição ao caos que ia na sua cabeça, colocando as esferográficas todas no mesmo sentido e aparando o bico já afiado dos lápis. Talvez… Não valia a pena, fosse o que fosse que despoletara a situação, Tomás era única e exclusivamente o único culpado por deixar que o dominasse. Sabia que eram coisas da sua cabeça, sem sentido, sem fundamento, mas mesmo assim não se esforçara o suficiente por as inibir.

Quando o psicólogo clinico a que recorrera quase arrastado por Carolina depois de um ultimato amargo o viu, estranhou a sugestão para ser avaliado por um psiquiatra da sua confiança. Ainda ponderou não comparecer na consulta, não estava louco, estava apenas assoberbado em trabalho, stressado do corre-corre diário, enfim, era apenas mais uma entre tantas mentes cansadas e a precisar de férias. Não precisava do psiquiatra para nada, precisava de se meter num avião com destino a uma ilha paradísica e não fazer nenhum durante um mês. Era exactamente isso que o Dr. Henrique lhe diria e era exactamente isso que ia fazer, mal saísse do seu gabinete. Conversaria com a mulher, para que pudesse agilizar o trabalho na estação, trataria de passar todo o seu trabalho ao seu chefe, a miúda entraria entretanto em férias lectivas e teriam um mês sabático. Iria fazer-lhes bem e voltariam desta viagem ainda mais unidos e rejuvenescidos.

- Tomás Carvalho. – a voz rouca trouxe Tomás de volta à sala de espera e, entusiasmado com a perspectiva de umas férias a curto prazo, dirigiu-se para o gabinete luminoso onde um médico com ar experiente e algo austero aguardava a sua chegada.

Experiências #3

- Tu estás parvo, Tomás?! Onde raio foste tu buscar essa ideia estapafúrdia? - não era a primeira vez que isto acontecia, Carolina sentia-se num déja vu, era discussão recorrente e ultimamente, bastante frequente. Mas desta vez, Tomás fora longe demais. 

É claro que ela o tinha visto. Era impossível não reparar no homem soturno que seguia atrás deles, em plena baixa lisboeta. Como um cão que segue uma pista, mas não tem ordem de ataque, Tomás foi no encalço deles, até à porta do hotel, subindo calmamente pelas escadas até ao 13º piso, onde teria lugar a reunião que apresentaria Carolina como diretora de conteúdos do canal em que trabalhava. 

Apostava em como Tomás contara os degraus, enquanto os subia de par em par. Sentiu o olhar dele fixo, penetrante e a sua postura rígida quando se sentou num dos sofás do átrio. 

Mesmo na sala, com a porta fechada e com felicitações contanstes por parte dos colegas, Carolina sentia-lhe a tensão, o nervosismo. Queria muito ir lá fora falar com ele, com calma, mas sabia que não seria escutada e tampouco conseguiria manter os ânimos leves.

A discussão começou no carro, ainda ela não tinha se tinha sentado e metade da direção da estação tinha os olhos cravados na sua figura trémula e ligeiramente envorgonhada. Não era todos os dias que uma mulher daquele calibre tinha um marido raivoso à espera.

- Eu vi Carolina! Não tentes ludribiar-me! Ninguém me contou, eu vi! - apontou-lhe o indicador acusador, como se ela tivesse acabado de cometer um crime.

- Viste o quê, Tomás?! Eu a almoçar com o meu chefe, amigo de longa data e que só por acaso é nosso padrinho de casamento, a subir com ele para o hotel com decorreu a minha reunião de apresentação como diretora de conteúdos?! - gritou, enquanto sentia a fúria crescer, dominando-a. Estava farta daquilo.

- Eu vi como tu olhavas para ele! Como lhe sorrias! Como abanavas a anca enquanto caminhavas à frente dele. Tu estavas a provoca-lo deliberadamente! Tal como provocas qualquer homem que por ti passe. Ou pensas que não sei? Que não vejo as trocas de olhares lascivos, hã? Pensas que sou parvo? Ou queres fazer de mim parvo? - Berrou ensurdecedoramente, enquanto pisava um bocadinho mais o acelador. Estavam quase em casa.

Num gesto automático, Carolina fechou os olhos e esfregou as têmporas. Procurou dentro de si a pouca calma que lhe restava e, quando a encontrou, falou o mais suavemente possível:

- Tomás, o que tu viste foi um almoço entre amigos. Tu sabes que o Luís é um dos melhores amigos do meu avô, viu-me crescer... Que sentido faria andar metida com ele? Pela enésima vez Tomás: não houve, nem nunca vai haver, nada entre nós.

Tomás assentiu, num gesto mecânico e muito pouco convincente. A raiva mal contida era facilmente percebida pela força com que segurava a manete de mudanças.

- Tens que parar Tomás. Não podes continuar com essa ansiedade, com esse nervoso miudinho que dá cabo de ti e te faz ver coisas onde elas não existem. Tem sido recorrente Tomás, acusas-me à frente de estranhos, à frente da miúda e agora à frente dos meus chefes? Qual vai ser a próxima? Vais insultar-me no meio da rua? Apontar-me o dedo e chamar-me de puta no meio de um restaurante só porque cumprimentei o gerente? - deixou que as perguntas pairassem no ar, enquanto ele estacionava o carro à porta de casa, preparando-se para a pergunta fulcral:

- Tomás, diz-me a verdade: tu começaste a medicação, pois não? Tu foste à consulta, ouviste tudo o que o dr. Henrique te disse, aviaste a receita na farmácia, mas nunca chegaste a abrir a embalagem, pois não?

Não se ouviu resposta. Apenas o bater da porta do carro, com uma força que não lhe era habitual. Viu-o subir as escadas de acesso ao apartamento, mas deixou-se ficar sentada, no carro, tentando descortinar o que o silêncio que sussurava. Não, era óbvio que não Tomás não tinha começado o tratamento. Era óbvio que estava pior, que já pouco empenho dedicava ao trabalho, perdendo um caso importante recentemente e não se preocupando em se redimir por isso. As perseguições eram cada vez comuns e embora não fosse agressivo com gestos, era-o em palavras e na postura. O ambiente familiar era praticamente inexistente, havendo apenas um esforço por manter as aparências quando Maria estava presente e mesmo assim, já tinha presenciado duas ou três discussões mais amargas.

Daqui para a frente, caso Tomás continuasse a rejeitar ajuda médica, a situação iria piorar drasticamente. Pensou em Maria e na memória que não queria que a menina guardasse do pai. Pretendia que o visse sempre como o homem que em tempo fora: seguro de si, assertivo, confiante, não este poço de ansiedade e ciúme em que se tinha tornado. Respirou fundo, saiu do carro e seguiu para casa. Ignorou o barulho de loiça a partir que vinha da cozinha, bem como o caos que estava instalado na sala e dirigiu-se ao seu quarto, fazendo uma mala pequena para si e preparando de seguida outra para Maria.

Deixou uma nota em cima da mesa de cabeceira, acariciando ao de leve o rosto da fotografia de Tomás que lá estava.

Decidida, com o coração apertado e esforçando-se por segurar as lágrimas que teimavam em rolar cara abaixo, Carolina saiu de casa. Lá dentro, os gritos continuavam, a loiça estalava e um casamento terminava.

Experiências #1

6:30 da manhã e o despertador toca na sua habitual tarefa de acordar a casa. Na imensidão do silêncio, o baixo beep contínuo do aparelho assemelha-se a um altifalante em dias de romaria.

Ainda naquele limbo que separa o sono do despertar, Tomás ignora o som. Sabe que Carolina o desligará em breve, enquanto se levanta quase num pulo. É sempre a primeira a levantar-se, enquanto toda a casa vai acordando, aos poucos. O cheiro a café acabado de fazer espalha-se pelas divisões, num último chamar da moleza matinal, arrancando-o dos lençóis a custo. Carolina brinda-o com um sorriso e um beijo mecânico, daqueles automáticos mas que já fazem tão parte dos dias que se torna impossível arrancar sem eles, ao mesmo tempo que prepara a lancheira da miúda. Trocam entre si trivialidades do dia que os espera: as reuniões dos empregos, o que irão cozinhar ao jantar e qual dos dois se despachará mais cedo para apanhar a miúda na escola.

As manhãs são uma correria, mas aqueles minutos em partilham o café encostados ao balcão da cozinha parecem estender-se no tempo. São o motor para o resto e talvez o único momento em que estão ali e se escutam mutua e efetivamente. À luz dos primeiros raios da manhã, a cozinha adquire uma luminosidade amarelada, quente, confortável, que contrasta com o frio que se faz sentir lá fora, num tipico dia de dezembro. Perdido nos seus pensamentos, Tomás dá consigo a pensar que os anos foram generosos com a mulher. Não era uma brasa, tampouco tinha o fulgor de outros anos, mas havia uma certa chama que ainda lhe brilhava nos olhos quando sorria. Tinha pequenas sardas à volta do nariz que se acentuaram depois da gravidez de Maria, que ela carinhosamente tratava por "marcas de guerra" e que muito raramente tentava disfarçar com maquilhagem. O cabelo mantinha o vigor e a vida própria que sempre teve, tal como a sua personalidade intrincada e volátil. Mesmo assim, sabia que não poderia ter feito melhor escolha quando, naquela tarde de verão lhe pedira para passar o resto dos dias a seu lado. Nunca, nem na pior das discussões, se arrependera de ter tomado tal decisão. Como se um passe de dança ensaiado e ritmado se tratasse, terminam o pequeno almoço e colocam a loiça na máquina. Tomás vai acordar Maria, enquanto Carolina termina de se arranjar. Mais uma manhã normal e comum, numa banal segunda feira.

O despertador toca de novo. Letargicamente, Tomás cala-o pela quinta vez nessa manhã. O visor de ponteiros luminosos diz-lhe que passam quinze minutos das sete, as memórias dizem-lhe que já há muito deveria estar a pé e trazem-lhe às narinas o cheiro de um café que ficou por fazer. Não sabe quando ou se voltará a levantar-se. Sobrevive apenas entre o vazio da casa e alegria das memórias, dominado pela saudade e queimado pela dor. Fecha de novo os olhos, numa tentativa fugaz de que o sono lhe leve o presente e lhe devolva o passado. Desliga de vez o despertador, antes que volte a tocar e o arranque de novo do sonho a que pretende voltar. O sonho do que fora, em tempos, a sua vida.

 

O texto que acabaram de ler é totalmente ficcionado e inventado ppela minha pessoa. Uma experiência incentivada por uma amiga querida que acredita na minha mão para as palavras, um bocadinho mais do que eu. :) E vocês? Sim, não talvez? Digam cenas!:)