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A Caracol

Um blogue pseudo-humoristico-sarcástico. #soquenão #ésóparvo

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Tema 2 - O amor e um estalo

Aurora encolheu-se um pouco mais, enroscando-se sobre si mesma, como se pretende-se desaparecer entre os cobertores da cama vazia. 

Deixou-se afogar num choro inconsolável e silencioso. 

Que fizera para merecer semelhante fado? Que raio de karma era este que lhe tirava o tapete do chão, uma e outra vez? O que fizera de errado? A culpa era sua. Tinha que ser sua. A quem mais cabia a função de proteger uma vida em curso, se não à mãe? De nada adiantava os médicos argumentarem que não a culpa não era dela, que não havia que pudesse fazer para impedir.

"São coisas que acontecem" - dissera-lhe a doutora Irene. 

Só que para Aurora, já era a terceira vez que "as coisas aconteciam" e desta vez esteve tão perto do limite temporal estipulado, permitiu-se sonhar mais alto, ver além do número 12, voar para lá do medo. Um luxo que lhe custou uma queda demasiado violenta. Não conseguia aguentar-se sequer de joelhos e tampouco saberia quando iria conseguir levantar-se. 

No torpor de um corpo dormente e dorido pelo constante soluçar, chegou-lhe a sensação acolhedora de um abraço. Uma nova torrente lágrimas molhou-lhe o rosto, o corpo foi sacudido por novos soluços. O abraço ficou mais apertado, cingindo-a num aconchego familiar. 

Instintivamente, num acesso de fúria, tentando manter consigo a dor que lhe queimava a alma e recusando qualquer consolo, Aurora desferiu um estalo na face de Jorge. Primeiro um, depois outro, outro ainda, tentando a todo o custo libertar-se do abraço que ele insistia em manter apertado. Não queria consolo, não queria pena, queria que a culpasse também que a odiasse, que dissesse que era pior mulher e a pior mãe do mundo. 

Quando por fim se cansou, a fúria deu lugar ao vazio. Pela primeira vez, naquilo que lhe parecera muito tempo, Aurora não sentiu nada e deixou-se levar pelo torpor que lhe invadia o corpo. 

- Não estás sozinha. Eu vou estar sempre contigo. Desculpa se falhei. Não estás sozinha. - foram as últimas palavras que ouviu, antes de mergulhar num sono profundo. 

 

Desafio dos Pássaros - Tema 1

 

- Então S' Alberto, que lhe aconteceu agora, homem? - perguntou Toninho, dono do café onde Alberto tomava a bica, todas as manhãs. 

- Olhe Toninho, é este tempo: ora chove, ora faz sol e o nevoeiro dá-me cabo da âncora, fico aqui a ganir de dores. 

- Isso é fruto da idade, o S'Alberto já vai nos setentas... 

- Pois Toninho, mas as dores sou que as sinto. Olhe, sabe o que lhe digo? Problemas, só problemas. 

- Não seja assim, homem! 'Tão já viu que há gente bem pior? Olhe, a Almirinha, por exemplo. 'Tão não é que partiu a bacia porque escorregou nas escadas? Está pr'a lá toda desconchavada. 

- A Almirinha está desconchavada? 

- Muito S'Alberto. Os médicos nem sabem quando vai ter alta do 'ospital. 

-  Oh, minha vida! 'Tão agora quem é que me vai lá casa ajudar a minha Alzirinha nas lides de casa? - suspiro - Problemas, só problemas. 

- Logo arranja alguém para isso, não fique tão carrancudo homem! Qu'importa é qu'Almirinha melhore, não é? 

- Pois, pois... 

- Olhe, quem também está muito mal é o Zé da venda. 

- O Zé? Qu'lh'aconteceu? 

- Consulta de rotina, o médico mandou fazer exame à  prósteta e olhe... Câncaro. Já começou a quimoterapia, coitadinho, disse-me a Ti Luzia, que o homem está um farrapo. 

- Valha-me Deus! 

- Já viu? Há gente bem pior, num é S'Alberto?

- Pior? Pior Toninho? Então agora com o Zé da venda assim, quem é que me vai levar as mercearias a casa? A Ti Luzia não tem carta... Estou para ver como vou resolver. Problemas Toninho, só problemas.