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A Caracol

Um blogue pseudo-humoristico-sarcástico. #soquenão #ésóparvo

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Desafio dos Pássaros #9

A luminosidade cegou-me através das pálpebras cerradas. 

Os lábios estavam gretados e em ferida. 

Sentei-me a custo, tendo consciência dolorosa de cada fibra que compunha o meu corpo. 

Estava nua, mas inexplicavelmente isso não me provocava incómodo ou pudor. 

Não havia ninguém, tinha a certeza disso. Ninguém me veria despida. 

Estava sozinha. 

Ao meu lado, como se ambos tivéssemos naufragado de um qualquer navio fantasma, jazia um pequeno cofre de madeira velho e carcomido em algumas zonas. Na tampa tinha gravado a palavra "Memórias". 

Instintivamente abri-o. 

Quatro rostos sorridentes olhavam para mim através de uma fotografia. 

Não os reconheci. 

A rapariga loira de olhos castanhos, com rosto sardento era-me familiar, mas não consegui identificar de onde. No verso da fotografia podia ler-se: "Verão '79, Barcelona". 

Peguei na fotografia seguinte: um casal novo, dos seus vinte e poucos anos, felizes e sorridentes. Não tinha nenhuma legenda no verso. 

Seguiram-se mais de uma dezena de fotografias. De bebés gorduchos a crianças desdentadas. De adolescentes com borbulhas a noivos de fato de gravata. Universitários na cerimónia de entrega de diplomas, estudantes no primeiro dia de escola. Mais bebés. Diferentes dos primeiros, mas com traços familiares deles nos olhos, no nariz e no queixo. 

Eram fotografias de família.  

Talvez o mar as tivesse trazido para esta praia. Talvez já cá estivessem quando eu aqui cheguei. 
Guardei novamente as fotografias no velho cofre de madeira. 

Coloquei-me de pé a custo e observei a linha do horizonte de água infinita. 

Talvez um dia aparecesse algum barco para me vir buscar. Talvez um dia conseguisse sair daquela ilha. Ou talvez ficasse ali para sempre. 

Sem pensar em mais nada, mergulhei nas águas calmas e ali me deixei ficar, a flutuar. Deixei de sentir o sol nas pálpebras, os lábios gretados e o corpo dorido. Apenas uma paz que ocupava cada poro do meu ser. 

Desfrutei daquela serenidade tanto quanto pude, decidindo que procurar o dono daquele tesouro de imagens mais tarde. 

Talvez o encontrasse do outro lado da ilha...